Quem é "Boy", traficante preso suspeito de mandar no Tijuca
Tiago Paixão Almeida foi capturado em 2018 e agora é suspeito de ordenar assassinato na região
Eu tenho oficina, ferro velho, faço casa para vender, vendo carro...”
"Não tenho apelido nenhum”.
"Continua a perseguição a mim, de um negócio que eu não faço, eu trabalho desde pequeno.”
Todas são frases de Tiago Paixão Almeida, 34 anos, ditas durante interrogatório na 4ª Vara Criminal de Campo Grande, como parte de processo por chefiar o tráfico de cocaína no entorno do Jardim Tijuca. A região vive em estado de guerra pelo comando da venda de drogas, com três assassinatos recentes no “quadrilátero da morte”, formado por ruas disputadas pelo comércio clandestino de entorpecentes.
Em pelo menos um deles, apurou a "Capivara Criminal", Tiago Paixão é suspeito de ser o mandante, mesmo estando em cela do EPJFC (Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho), desde novembro de 2018.
O motivo seria a entrada de novos traficantes em área "proibida", onde antes havia acordo entre dois grupos: um vendia maconha, o outro cocaína.
A prisão de "Boy", apelido de Tiago de acordo com a polícia, foi consequência de trabalho da Denar (Delegacia Especializada de Repressão a Narcóticos”, que serviu de base informativa para a denúncia do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul).
Foram 3 meses de campana e de interceptações telefônicas para produzir elementos probatórios. Graças a esse conteúdo, as afirmações do réu não convenceram. Ele foi condenado à pena de 18 anos de reclusão, pelos crimes de tráfico de drogas, associação para o tráfico e posse ilegal de arma de uso restrito, em sentença da juíza May Melke Amaral Penteado Siravegna, da 4ª Vara Criminal de Campo Grande, de maio do ano passado.
Quando foi pego, estava com uma pistola Glock 9 mm sem registro. Alegou ser para defesa própria, depois de ter sido baleado durante assalto anos antes.
Carrapatos de cocaína - De forma diversa de criminosos apontados como cabeças de esquemas da bandidagem, o rosto de Tiago Paixão não é tão conhecido como outra “marca” de sua atuação ilegal. Entre clientes, traficantes e agentes das forças públicas de segurança, é o jeito como seu bando embalava as paradinhas a principal referência quando ele e os comparsas são citados.
As “doses” de cocaína comercializada pelos "funcionários" de “Boy” eram em formato de gotas, feitas de saco plástico preto, selados com vela ou isqueiro. Passaram a ser chamadas de “carrapatinhos”.
Quando Tiago Paixão “caiu”, durante a operação "Progresso", feita em 19 de dezembro de 2018, foi descoberto laboratório onde o entorpecente era produzido, na Vila Fernanda. No imóvel - cujas faturas estavam em nome da mulher dele, Marília Teixeira de Freitas, 36 anos - havia 2,5 mil gotas de droga.
Ali, também foram achados materiais usados pelos traficantes, como uma mesa com sinais de queimados do processo de fechar as embalagens, balança de precisão e liquidificador.
Marília foi presa, assim como a irmã de Tiago, Jaqueline Paixão de Almeida, de 32 anos, a cunhada dele, Ana Sílvia Cardoso Flores, 27 anos, irmã de Marília, e o pai, Francisco Cavalcante de Almeida, de 67 anos. Com Ana Sílvia, foi apreendido um quilo de cocaína, em imóvel para o qual ela se mudaria, conforme afirmaram os réus. Localizado no Taveirópolis, esse local abrigava depósito da "sociedade" do tráfico.
Tratava-se, indicaram as descobertas policiais, de negócio ilegal familiar. Na denúncia contra os envolvidos na quadrilha, o promotor Marcos Tieppo incluiu o crime de organização criminosa, cuja pena é mais pesada, porém a juíza entendeu não haver elementos para essa tipificação.
Ao todo, foram 11 prisões no dia da operação, para por atrás das grades integrantes do que a Denar enxergava como organização criminosa dedicada ao tráfico de entorpecentes. No entendimento dos responsáveis pelo inquérito, havia divisão de tarefas, característica básica para tipificar uma “orcrim”, além de comando definido.
Era o casal, Tiago, e a mulher, Marília, quem dava as ordens.
Dias antes de ambos serem presos, em 20 de novembro de 2018, Henrique Dias Rodrigues, o “Rato”, 26 anos, fôra pego, com 304 papelotes de cocaína e R$ 1,5 mil, quando saia da oficina Auto Giro, na Rua Maracaibo, na Coophavila II, na saída de Sidrolândia. O estabelecimento era de Tiago e a da esposa, que afirmam ter vendido o ponto dias antes da operação, mas depois da prisão de Henrique.
"Rato" guiava um Vectra branco, ficou nervoso, tentou fugir da abordagem policial, mas acabou tendo de parar com pneu furado, segundo informado nas peças produzidas pela delegacia.
Transferência às presas - “Ao ser questionado, acabou confessando que pertenciam a Tiago e Marília”, consta dos autos derivados da operação. O flagrante anterior rendeu condenação a Henrique Dias Rodrigues a pouco mais de dois anos de cadeia, além de multa em torno de R$ 6 mil, em processo separado.
Apesar dessa pena branda que viria, a captura de Henrique teve impacto decisivo nas ações do grupo criminoso.
O acusado Tiago ordenou, após a prisão do acusado Henrique, a mudança do laboratório que ficava nos fundos da Oficina Auto Giro para uma antiga residência do casal, cujas contas estavam no nome da acusada Marília, tendo Tiago inclusive ordenado à Ana Silvia que separasse a droga, pois alguém iria passar para pegar e levar para o novo laboratório”, relata a sentença condenatória.
“Rato” não era apenas "mais um" traficante da região. Era o gerente de “Boy”, indicam as peças acusatórias. Sua missão era levar a droga no estado “bruto” para Jaqueline e Ana Sílvia prepararem tudo. Depois, o produto clandestino ia para as mãos dos vendedores, parte deles adolescentes. Isso porque saíam mais rápido de eventual flagrante e costumavam delatar menos.
Caixa registradora - Por mês, foi identificada movimentação financeira entre R$ 15 e R$ 20 mil só no Tijuca. “Os traficantes que trabalhavam para Tiago e Marília faziam a comercialização da droga 24 horas por dia, cada um trabalhando em turnos de 8 horas”, detalha a sentença, ao citar as apurações.
Na fase de inquérito, foi estimado lucro diário, no geral, de R$ 25 mil, cerca de R$ 750 mil ao mês.
No laboratório, antes instalado em um quarto da oficina de fachada, e depois na casa da Vila Fernanda, chega-se a preparar 2,5 mil “carrapatinhos” por dia.
Quem vendia, recebia em droga, não em dinheiro. Podia revender parte e consumidor o restante, comportamento verificado pelas autoridades.
“Somos pobres, doutora” – Essa frase foi usada por Marília Teixeira de Freitas na sua vez de ser interrogada pela magistrada. Disse morar de aluguel, reclamou de a casa da Vila Fernanda ter sido depredada e de seu único bem, um Voyage, estar sendo "usado pela polícia". O veículo foi apreendido.
"Sou empresária, mãe, estudante". Marília Respondeu isso quando foi perguntada sobre bens atribuídos ao casal pelo Polícia Civil e pela MPMS, entre eles um rancho em Terenos, colocado em nome de laranja do grupo.
Aí entra outro indivíduo alvo da operação, Wellington Silveira Flores, 26 anos. O Vectra branco em que o gerente "Rato" foi preso estava no nome dele, mas era de Tiago, de fato, segundo levantando.
Da mesma forma, o “Rancho Três Irmãos”, propriedade em Terenos, cidade vizinha a Campo Grande, estava registrado como sendo dele. Na delegacia, ao ser preso, “Pituxa”, apelido de Wellington, admitiu ter recebido R$ 3 mil para escriturar o lugar como se fosse seu. Em juízo, negou.
Wellington ainda foi acusado de servir de testa de ferro para outro empreendimento no qual o casal Tiago e Marília investiu o dinheiro auferido com a droga: a construção de casas para venda pelo programa “Minha Casa, Minha Vida”, avaliadas em R$ 120, 130 mil.
Em cada quatro casas, a gente recebia R$ 520 mil”, afirmou Tiago Paixão no interrogatório. Tanto ele quanto a companheira justificaram usar a identidade de outra pessoa por ter “nome sujo”, impossibilitando de contratar financiamento em bancos. “Pituxa foi chamado para ser parceiro por ser pedreiro experiente.
Em contraposição, para atestar o uso do “laranja”, foram listadas procurações de Wellington dando plenos poderes a Tiago Paixão. Em juízo, Wellington mudou a versão dada na delegacia e disse ter recebido pelo serviço de construção das obras o valor de R$ 130 mil.
No interrogatório assim como nas peças escritas da defesa, Tiago nega todas as acusações. Garante, como citado inicialmente neste texto, que vivia da oficina, das casas construídas para venda, de dois ferros-velhos, além da comercialização de carros adquiridos em leilões.
Mais uma renda citada por ele foi de vendas de peças pela internet, ou para clientes de outras cidades.
Para a magistrada, alegou ser vítima de perseguição de policiais. Garante ter sido algo de um "tráfigo forjado" em 2013 e de estar sendo "caçado" depois que uma outra tentativa de flagrante deu em nada, em "2014 ou 2015".
Quando do cumprimento de seu mandado de prisão, diz ter feito acordo com um dos delegado, para "dar alguma coisa" em troca da liberdade da mulher. Não há registros no processo de ter sido feita denúncia oficial sobre isso.
O monitoramento da polícia encontrou, ainda, imóveis em nome de "Boy" em Santa Catarina, em Balnearário Camboriú, onde eram passadas as férias.
O Tiago sempre foi rolista”, definiu a esposa na frente da juíza, para explicar a variedade de fontes de renda do companheiro.
Tanto Tiago quanto a mulher disseram ter um cliente chamado Antônio em Corumbá, para explicar viagens à cidade dividida pela Bolívia por apenas uma rua. Para a acusação, o motivo é outro: a compra de cocaína.
Com discurso unificado, Tiago e Marília afirmam que a polícia o persegue. “Tudo que acontece, é o Tiago”, diz ela em seu depoimento.
Marília Teixeira de Freitas foi condenada a 10 anos de prisão na mesma sentença dada ao marido. Mas presa mesmo, ela ficou pouco tempo. Por decisão do desembargador Divoncir Schereiner Maran, foi solta em janeiro de 2019, para cuidar dos filhos menores de 12 anos.
Deixou de ser monitorada por tornozeleira em novembro de 2019, pois venceu o prazo para uso desse tipo de equipamento segundo as regras estabelecidas pelo Judiciário. Quando saiu a condenação, em maio do ano passado, passou a ter direito de prisão domiciliar.
O pai de Tiago, Francisco Cavalcante de Almeida, que para a Policia Civil era olheiro da quadrilha, foi inocentado por falta de provas e solto assim que saiu a decisão final de primeiro grau. O filho disse não ter relação próxima com o pai, alegando contratá-lo apenas como segurança das obras de casas populares.
A irmã Jaqueline era, segundo descrito pelo casal, faxineira da oficina e no ferro-velho, e recebia salário comercial para isso. A irmã de Marília, de acordo com a alegação, morava na oficina como uma tentativa de ajuda, por ter vindo recentemente do Acre, onde ficou presa por cinco anos.
"Boy" alegou não saber o que ela fazia no quarto ocupado na oficina. Ana Sílvia disse ter comprado a droga pega com ela, um quilo de cocaína, para vender e tentar quitar dívida com um traficante do Acre.
De todos os citados pela Capivara Criminal, a investigação jornalística descobriu apenas Ana Sílvia e Tiago em regime fechado. Ela está no presídio Irmã Irma Zorzi, ele na “Máxima”, nome mais popular do EPJFC.
Cumpre pena na ala dos detentos ligados à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Pouco tempo depois de chegar na penitenciária, em dezembro de 2018, o preso foi pego com um celular e colocado em isolamento, informação prestada no processo de execução penal.
Vários recursos já foram apresentados pelos advogado deles conta a condenação. Um dos argumentos para tentar libertá-lo é uma doença pulmonar crônica, agravada pelo fato de ter uma bala alojada no peito, como cicatriz do assalto sofrido.
A mais recente tentativa aguarda julgamento no STJ (Superior Tribunal de Justiça), defendendo o risco de contrair covid-19 como motivo para concessão de habeas corpus. Ainda não houve julgamento.
Ao ser preso, Tiago ainda teve uma fala que ficou registrada nos autos: desdenhou do que estava acontecendo, afirmando que "qualquer" R$ 200 mil compra um desembargador.
O histórico de Tiago Almeida Paixão com a Justiça é longevo. Seus primeiros flagrantes, por furto, foram por volta dos 15 anos. Aos 22, matou um primo com 5 tiros, em Anastácio, durante festa de 15 anos.
Alega ter sido legítima defesa. Recebeu pena de 7 anos. Quando foi capturado dois anos atrás, estava em livramento condicional de outra pena cumprida.
(*) Marta Ferreira, que assina a coluna “Capivara Criminal”, é jornalista formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), chefe de reportagem no Campo Grande News. Esse espaço semanal divulga informações sobre investigações criminais, seus personagens principais, e seu andamento na Justiça.
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(Coluna editada às 13h25 para acréscimo de informação)