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Capital

Ação para manter psiquiatria da Santa Casa relata cenário de caos

Pacientes amarrados em leitos de Unidades de Saúde e ameaças de transferência compulsória são detalhes da ação civil pública movida pela defensoria

Izabela Sanchez | 02/10/2017 19:25
Paciente amarrado na cama em unidade de saúde (Reprodução)
Paciente amarrado na cama em unidade de saúde (Reprodução)

Ameaças constantes de transferência compulsória, pacientes amarrados em leitos precários de unidades de saúde e uma fila imensa à espera de internação. Os detalhes parecem cenas do filme 'Nise: o coração da loucura', que mostra a rotina de um 'manicômio' na década de 1950, antes da reforma psiquiátrica. Trata-se de Campo Grande, em 2017. A denúncia é da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, que ajuizou uma ACP (Ação Civil Pública) contra a Associação Beneficente de Campo Grande, administradora da Santa Casa e contra o governo do Estado.

A Ação tenta impedir que o histórico setor de psiquiatria da Santa Casa seja fechado, além de denunciar a ilegalidade da situação dos pacientes que sofrem com transtornos mentais em Campo Grande e em mais de 50 municípios. A Santa Casa já declarou que o contrato junto ao Hospital Nosso Lar para a transferência dos pacientes foi assinado e já declara encerramento da internação e do ambulatório. Esse processo, no entanto, é acusado de ter sido realizado de forma completamente ilegal.

Quebra de acordo - A ação é movida pela defensora Eni Maria Sezerino Diniz, que recebeu denúncias de familiares de pacientes, conforme explica no processo judicial. Temendo que o hospital fechasse a psiquitria, a defensora solicitou reunião junto à diretoria da Santa Casa.
O encontro, no dia 11 de setembro, terminou com a promessa, conforme relata, de que os pacientes não seriam transferidos até que as negociações com o município - que tenta chegar a um acordo - terminassem.

Não foi o que ocorreu. No dia seguinte, 12, a defensora conta ter sido surpreendida pela notícia de que a Santa Casa havia se reunido com o MPE-MS (Ministério Público Estadual) e que a Psiquiatria chegaria ao fim.

A defensora relata, na ação, que a Santa Casa contratou uma empresa, Falconi Consultoria, "que entendera que o serviço deveria ser descontinuado pois a taxa média de internação seria baixa e assim como também baixo o número de atendimentos ambulatoriais".
A defensoria acusa o hospital de "tratar os pacientes como meros objetos de mercância".

Ofício da Santa Casa afirmando que não iria transferir os pacientes até que a negociação com o município chegasse a um fim (Reprodução
Ofício da Santa Casa afirmando que não iria transferir os pacientes até que a negociação com o município chegasse a um fim (Reprodução

Pacientes amarrados em UPA

Entre as ilegalidades retratadas - todas proibidas pela Lei 10.216, em 06 de abril de 2001, que institui a Reforma Psiquiátrica - a defensora relata que visitas técnicas constataram tratamento desumano aos pacientes que aguardam vagas na psiquiatria. Sem local para serem internados, eles são encaminhados para Unidades de Saúde, onde ficam amarrados e sem alimentação, conforme pontuou a defensora. Um deles, conta ela, estava "internado" no leito da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) das Moreninhas há 15 dias.

"Em pesquisa realizada no sistema de regulação hospitalar em 13/09/2017 as 09:30 horas para internação psiquiátrica encontram 20 pacientes aguardando leitos psiquiátricos nas Unidades de Pronto Atendimento UPA e Centro Regional de Saúde – CRS do município de Campo Grande. Essas 20 pessoas são pacientes psiquiátricos que estão internados em UPAs, em surto psicótico, contidos mediante amarras em macas conforme bem demonstra a fotografia em anexo de um paciente que se encontra na UPA da Moreninha há mais de 15 (quinze) dias aguardando vaga para internação hospitalar urgente".

Mato Grosso do Sul é um Estado com sério deficit de internação psiquiátrica. Segundo a defensora, no dia em que a ação foi protocolada, 58 pessoas aguardavam vagas para internação. Além de Campo Grande, enfatiza ela, mais de 50 municípios dependem dos leitos oferecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Manter pacientes "internados" em unidades de saúde é ilegal, salienta a defensoria, e foi tema de outra ação movida em 2014.

Nosso Lar não pode receber os pacientes

Outra ilegalidade apontada pela defensoria é que o Hospital Nosso Lar não pode receber os pacientes da Santa Casa. Isso porque as modalidades de atendimento psiquiátrico são diferentes, conforme a defensora explica nos autos.

"Embora o referido nosocômio seja respeitável em todos os seus aspectos, há que salientar que se tratam de estabelecimentos médicos de natureza diferentes, cada um adequado a uma população psiquiátrica diferente. Enquanto a Santa Casa é voltada para atendimentos de pacientes agudos e que necessitam de respostas rápidas, o Hospital Nosso Lar tem sua vocação para atendimentos de pacientes crônicos e/ou reagudizados", afirma.

Segundo ela, no Nosso Lar não é permitida a permanência de acompanhante, "e que desperta sentimentos de grande angústia nos pacientes em vista do forte estigma asilar e manicomial que aquele hospital psiquiátrico possui". "Todos os pacientes, representados por seus familiares, assinaram documento à Defensoria Pública na qual repudiam a transferência para o hospital indicado pela requerida", comenta.

Paciente psiquiátrico "internado" em unidade de saúde (reprodução)
Paciente psiquiátrico "internado" em unidade de saúde (reprodução)

Transferência compulsória - As denúncias de famílias dos pacientes recebidas pela defensoria também afirmam que eles "assustaram-se com ameaças de transferência compulsória", o que é ilegal segundo a lei que instituiu a reforma psiquiátrica.

"Segunda feira, a Defensoria Pública recebeu pedido de ajuda dos familiares dos pacientes internados na requerida/ABCG, que relataram ter recebido a informação em reunião realizada naquela manhã com uma psicóloga e uma assistente social do Hospital Nosso Lar, que teriam ido até as dependências da psiquiatria para conhecer os pacientes e seus familiares e informa-los de que haveria a imediata transferência dos pacientes internados para aquela outra unidade hospitalar", afirma.

Segundo a defensora, na Santa Casa, os pacientes foram informados "que a determinação da direção da requerida/ABCG era de que a transferência ocorreria de forma imediata no correr da semana, e que o paciente ou familiar que recusasse a transferência teria a alta médica decretada à sua revelia".

Fim do ambulatório - Outra questão apontada na ACP é a imensa fila de atendimento ambulatorial. Com o fim da psiquiatria, o ambulatório também irá fechar as portas, o que já foi confirmado pela assessoria de imprensa da Santa Casa. A Defensoria apontou que são realizadas em torno de 370 consultas médicas por mês, e que há mais de 7.380 pessoas aguardando vagas para a realização de consulta psiquiátrica.

Conforme o processo, a primeira audiência para resolver o impasse foi marcada para esta terça-feira (3), às 15h, por determinação do juiz David de Oliveira Gomes. A reportagem consultou a Santa Casa, a Prefeitura e o governo do Estado por meio da assessoria de imprensa, mas em razão do horário não foi possível obter resposta.

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