Câmara investiga omissão do poder público e erros que mataram criança de 2 anos
Pretensão é ouvir famílias que relatem as dificuldades com os serviços públicos
As comissões de Segurança Pública e Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de Campo Grande se articularam e na semana que vem, no dia 15, a partir das 9h, parlamentares querem ouvir relatos de pais sobre a condição de atendimento da rede de proteção às crianças e adolescentes.
A morte da menina de 2 anos e 7 meses, em 26 de janeiro, colocou no centro do debate a eficiência dos serviços, já que o pai, Jean Carlo Ocampos, relatou uma via crucis em busca por ajuda, diante das suspeitas de que a filha sofria violência no ambiente doméstico. Ela morava com a mãe e o padrasto e no dia da morte, descobriu-se que ela tinha um histórico de 30 passagens por postos de saúde.
Conforme o vereador Paulo Landes, do Patriotas, da Comissão de Segurança, Ocampos garantiu que comparecerá. Ele classificou o caso como uma “tragédia anunciada”. Os vereadores querem que outros pais também façam seus relatos. O principal, conforme exposto por vereadores esta manhã, durante a sessão na Casa Legislativa, é começar pelos testemunhos.
Mas os parlamentares também vão convidar entidades da sociedade, como o CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente), a OAB e o Conselho de Serviço Social, além de autoridades.
O caso já demandou debate de vários agentes que trabalham com o atendimento às crianças em Campo Grande, em reunião promovida na semana passada pelo Ministério Público. A reportagem do Campo Grande News tentou, desde então, saber dos encaminhamentos com a Promotoria e Juizado da Infância, Defensoria Pública, com a Secretaria de Saúde e o Conselho Municipal, sem sucesso.
Na semana seguinte à morte da filha, Jean Ocampos contou os passos que percorreu em busca de proteção para a filha. A situação ainda pode ter um elemento de preconceito. O pai vive uma relação homoafetiva e sempre esteve acompanhado do marido Igor de Andrade. Para o casal, além da burocracia, eles enfrentaram má vontade.
1ª ida à Polícia – Em 31 de janeiro do ano passado, o pai foi à DEPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente) relatar suspeita de agressões, já que a menina, à época com 1 ano e meio, tinha vários hematomas e a ex-sogra contou-lhe que a filha estaria batendo na garota.
A movimentação seguinte dessa investigação, conforme cópia a que o Campo Grande News teve acesso, foi em 15 de março, com requisição do laudo do IML pela Polícia. Ocorre que a criança não foi submetida ao exame.
Dois dias depois, em 17 de março, a mãe, Stephanie de Jesus da Silva, foi ouvida, negou ter se excedido com a criança e atribuiu a denúncia a exagero do ex-marido. A mãe dela também falou no mesmo dia, admitiu que fez um desabafo ao pai da criança, mas isentou a filha de culpa e afirmou que estava tudo bem. No dia seguinte, essa investigação foi concluída e enviada à Justiça.
Como o caso foi registrado como maus-tratos, crime considerado de menor potencial ofensivo, e, por isso, levado ao Juizado, onde há uma tramitação diferente da adotada nos crimes mais graves. Não foi feita instrução e, durante audiência com juiz e promotor, Ocampos acabou reconhecendo que não tinha novos elementos e o caso acabou arquivado.
A 2ª denúncia – Em 22 de novembro, a menina já com 2 anos e 5 meses, novamente o pai foi à DEPCA, desta vez levando a filha com hematomas e a perna engessada, com a tíbia fraturada. Mais uma vez o caso foi registrado como maus-tratos. Ele contou à reportagem que nesta data ele esperava ter conseguido uma medida protetiva para a menina. Foi difícil conseguir pegar a criança para ir à polícia. A mãe dele precisou intervir e pedir à genitora que a deixasse ficar com a neta.
Dali, eles não foram encaminhados ao IML. A Polícia diz que a criança novamente não foi levada para exame de corpo de delito. A reportagem foi informada que esse novo termo circunstanciado, nome dado ao boletim registrado nos casos de menor potencial ofensivo, foi concluído em dezembro e remetido para distribuição a uma vara do Juizado. A Justiça não informou qual foi o trâmite adotado neste caso.
O Conselho Tutelar – Ocampos esteve em dois momentos no Conselho Tutelar. A primeira, no começo de fevereiro, depois que registrou o primeiro boletim de ocorrência. Esperava que o Conselho investigasse sua suspeita de violência doméstica. No Conselho da região norte, a reportagem apurou que houve uma visita à residência em que ela morava com a mãe, o padrasto, um filho dele e um bebê do casal, e a informação foi de que não teria sido constatada irregularidade na casa.
Ocampos voltou ao Conselho em maio, de novo pedindo que o Conselho verificasse se não ocorria violência contra a filha. Mais uma vez, conforme informações repassadas no dia seguinte à morte, nada de incomum teria sido constatado.
A partir dali, não houve mais interferência do Conselho Tutelar.
A Defensoria - Ocampos apostava em algum documento para que pudesse tentar obter a guarda da filha. Ele chegou a ir à Defensoria Pública debater a possibilidade e foi informado que precisava reunir provas, o que acabou não conseguindo.
Entre tantas idas e vindas, o tempo correu e a violência contra a menina escalou. A tragédia que atingiu a pequena garota ocorreu em meio ao momento em que entrava em vigência o maior avanço recente na proteção à criança, a Lei Henry Borel, de maio de 2022, prevendo maior articulação da rede de atendimento, o incentivo às denúncias, o maior rigor nas punições, o apoio a quem denuncia, a punição aos omissos. Mas nada disso alcançou a menina.