“Ódio”, diz moradora que já tirou R$ 300 do bolso para cascalhar própria rua
Via onde moradores pagaram por cascalho e sofreram acidentes está na rota de empresa investigada por desvios
Ódio, revolta!”, diz ter sido o sentimento de Ivone Moura, de 68 anos, após a descoberta que a Rua Abadia Jabour é uma das que deveria receber manutenção por parte da Engenex Construções e Serviços Ltda., investigada por desvios de recursos públicos na Operação Cascalhos de Areia.
A empresa é dona de contrato de R$ 22 milhões com a Prefeitura de Campo Grande, justamente para fazer cascalhamento, obra que moradores dizem não ver há muitos anos no trajeto de 650 metros da via nos fundos do Coophavila 2.
A aposentada, que mora há três décadas no bairro, foi personagem de matéria do Campo Grande News em outubro do ano passado. Já revoltada com a falta de atenção da administração municipal com as ruas que ficam entre a Rua da Península e a Marginal Lagoa, Ivone relatou que, no ano passado, já havia tirado R$ 300 do bolso para cascalhar trecho da Abadia Jabour em frente da própria casa. Do contrário, seria impossível guardar o carro na garagem.
Ela explicava que sem asfalto e manutenção frequente, toda vez que chovia, a enxurrada levava para longe as lascas de pedras despejadas por empreiteira, mas pouco compactadas, ao longo das oito quadras. A aplicação do revestimento em ruas não asfaltadas é alternativa para amenizar o sofrimento de moradores com o poeirão vermelho da Cidade Morena ou com a lama enquanto a pavimentação não chega.
A moradora narrou ainda que sem ver equipe contratada pela prefeitura passar pela rua com a frequência necessária, de tempos em tempos, ela mesma pagava uma pessoa para fazer um cascalhamento improvisado – trazer o cascalho acumulado no final da rua para tapar as valas formadas pela força da água em frente de casa. “Estamos a Deus-dará aqui. Não tem área de lazer, infraestrutura e o asfalto é um grande complicador. Nem adianta a gente investir na casa se fica na terra”, reclamou à época.
A notícia, na semana passada, de que o MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) tem indícios da instalação de esquema para uso do dinheiro público destinado à manutenção de vias sem pavimento para o enriquecimento ilícito de um grupo veio como uma bomba para a aposentada. “Peguei no pé daquele Rudi [ex-secretário de Infraestrutura, investigado na Cascalhos de Areia]. Ligava de manhã, de tarde e de noite perguntando do nosso asfalto. Dei o telefone dele para todo mundo e nada. Várias vezes paguei para cascalhar aqui. Eu falava que quando o meu neto começasse a andar, ia ter asfalto. Ele está com 18 anos. Que que adianta? Eu gastei pra reformar minha casa, mas hoje não tenho mais vontade de ficar aqui!”.
A aposentada diz que pensa mesmo em se mudar. “Não vou mais jogar [cascalho] e quero ver todo mundo na cadeia! Nós não temos nada aqui!”, diz Ivone, mais revoltada ainda com o descaso.
Consequências “para os ossos” – As consequências de viver em local onde é impossível fazer trajeto de 7 minutos a pé sem ter de desviar de valetas e buracos, pedras ou lama, Helena Miranda Balbuena, 63, sentiu na pele, ou melhor, no corpo. “Já caí já me quebrei aí, várias vezes. Fraturei pé e punhos. Se eu tivesse pra onde ir, já teria ido embora”, afirma a costureira, que mora na Abadia Jabour há 40 anos.
A manicure Maria Selva Vargas Balbuena, 60, que se mudou há 18 anos para a vila, conta que também já se machucou na via acidentada. “Eu também quebrei o braço”. Ela lamenta descobrir que a rua poderia estar em melhores condições, se a verba dos cofres públicos fosse melhor aplicada, mesmo admitindo que não sabe muito o que fazer com a informação. “Pago R$ 980 de IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano]. A gente fica até triste, porque faz mais de 5 anos que não jogam um cascalho aí”.
O militar Ivan de Aquino Santana, 22 anos, também diz ser testemunha que patrolas e rolos compressores não passam pela Abadia Jabour há muito tempo. Ele é morador “da vida toda”. “A gente espera mais de 20 anos pelo asfalto, pros caras agirem de má-fé com a gente. É complicado”.
Santana se recorda que há cerca de 1 mês, a rede de esgoto chegou ao local, o que fez as condições da rua piorarem. “Só chegaram e mexeram no esgoto, abriram as valetas e taparam. Já tem um mês. Mas não passaram nem rolo, nem nada. Nunca cheguei a ver cascalho aqui não”.
O militar relata ainda a dificuldade para sair de casa, até de carro. “Às vezes eu tenho de ir até o asfalto pra pegar carro de aplicativo, porque eles não vêm aqui, para não sujar. Eles cancelam a corrida”.
A empresa e o contrato – A Engenex tem dois contratos com a Prefeitura de Campo Grande para “manutenção de vias não pavimentadas, com revestimento primário [cascalho]” em vigor. São no total R$ 37.173.332,46, dos quais R$ 22.631.181,87 para o trabalho na região urbana do Lagoa, onde está inserido o Coophavila 2.
A investigada na Cascalhos de Areia conquistou os contratos em 2018, quando foi feita licitação para terceirizar o cascalhamento de vias em Campo Grande. Para operar na região do Lagoa por 365 dias, a partir de setembro de 2018, a Engenex receberia R$ 3.448.107,58. A contratação, porém, foi sendo prorrogada e aditivada. Por isso, o valor inicial multiplicou sete vezes.
Até o ano passado, 30% das ruas da cidade não tinha pavimentação, conforme registrado pelo Campo Grande News na publicação do dia 4 de outubro. Em 2020, o total de vias na área urbana atingiu 4.061,50 quilômetros, dos quais 2.874,00 quilômetros eram asfaltados e 1.187,50 quilômetros, “de chão”.
Denúncia e investigação – Motivada por denúncia anônima, em tom de desabafo, a investigação da 31ª Promotoria de Justiça levou três anos para desencadear a Operação Cascalhos de Areia, que foi às ruas na quinta-feira passada, dia 15, atrás de mais provas contra esquema de corrupção milionário em contratações feitas pelo Executivo municipal entre 2017 e 2022.
A denúncia, assinada por “servidores da comissão de licitação” da Prefeitura de Campo Grande, diz que contrato do município com outra empresa é de “fachada”, porque os serviços não são executados e os milhões pagos são usados para a compra de imóveis para o ex-prefeito Marquinhos Trad e sua família.
A escolha do esquema em usar vias não pavimentadas é justamente para dificultar a fiscalização, ainda de acordo com os denunciantes. Por isso, todos os contratos firmados a partir da concorrência pública nº 003/2018 entraram na mira do MP e foram descobertas ligações da Engenex com o grupo investigado.
A partir do “bilhete” anônimo, a 31ª Promotoria instaurou investigação que, na semana passada, culminou na operação para cumprir 19 mandados de busca e apreensão. Os alvos foram as empresas, empreiteiros e servidores públicos.
Tanto a Engenex quanto o empresário Mamed Dib Rahim, antigo dono, e Edcarlos Jesus Silva, atual proprietário, foram alvos das ordens judiciais.
A força-tarefa, que também conta com a ajuda do Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado), agora tentará provar que envolvidos cometeram crimes de peculato, corrupção, fraude à licitação e lavagem de dinheiro, relativos a contratos para manutenção de vias não pavimentadas e locação de maquinário de veículos na Capital.
Outro lado – Em entrevista ao Campo Grande News, que foi ao ar na segunda-feira (19), o ex-prefeito Marquinhos Trad negou irregularidade na contratação das empresas investigadas pela Cascalhos de Areia. “Foi feita concorrência publica, várias empresas concorreram e quatro empresas ganharam lotes. A Rial ganhou dois lotes, a Engenex ganhou dois lotes, a Gradual ganhou um lote e a ALS ganhou um lote”, afirmou.
Negando ainda qualquer envolvimento com os alvos da operação, Trad afirmou que a denúncia teve fundo eleitoreiro. Em 2020, ele foi candidato à reeleição. “É uma denúncia de seis ou sete linhas que foi escrita por um anônimo desprovido de qualquer elemento de prova”, disse Marquinhos. “Essas denúncias foram feitas durante a eleição”, finalizou.
O ex-secretário Rudi Fiorese, lembrado por Ivone Moura, informou, via mensagem, que por enquanto não vai se manifestar.
Desde a quinta passada, o Campo Grande News tenta, sem sucesso, encontrar os investigados. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
A reportagem também fez contato com a atual gestão do município, via assessoria de imprensa, para saber se há previsão de asfalto para a região citada, mas até o fechamento desta matéria não obteve resposta.
Às 18h, a comunicação da Prefeitura de Campo Grande fez contato com a reportagem para informar que “em janeiro deste ano as equipes da Sisep [Secretaria Municipal de Infraestrutura e Serviços Públicos] executaram o serviço de cascalhamento na via”, embora mais de um morador afirme que há muito tempo o revestimento primário não é feito no local.
A administração municipal não esclareceu se "as equipes" eram formadas por servidores da secretaria ou da empresa contratada para fazer o serviço. Também não respondeu sobre se há pavimentação prevista para a região.
(*) Matéria alterada às 14h28 para correção de informação.
(**) Matéria alterada às 18h12 para acréscimo do posicionamento da Prefeitura de Campo Grande.
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