"Exortação aos médicos da peste"
Para começar, nunca devem ter medo. Sabemos de gente que levou a cabo o ofício de soldado com medo dos canhões. Mas o certo é que as balas matam por igual a valentes e medrosos. O azar incide na guerra, mas muito pouco na peste. O medo infecta o sangue e esquenta os humores: dizem todos os livros. Assim pois, predispõe a ficar sob a tutela da enfermidade; e para que o corpo vença a infecção, a alma tem de ser forte. É certo, não há pior medo que o medo ao final último, pois a dor é temporal. Dai que vocês, os médicos da peste, devam enfrentar a ideia da morte e reconciliar-se com ela, antes de entrar no reino que a leste lhes prepara. Se saírem vencedores nisto, o serão em tudo, e os verão sorrir em meio ao terror. Em conclusão, lhes fará falta uma filosofia.
Também terão de ser discretos em tudo, o que não quer dizer em absoluto ser castos, outra forma de excesso. Cultivem uma alegria razoável a fim de que a pena não altere a fluidez do sangue e a prepare para a decomposição. Nesse sentido, não há nada como usar o vinho em boa quantidade, para aliviar um pouco o ar de pesadelo que lhes chegue da cidade empesteada.
Em termos gerais, observem a organização, [os protocolos], primeira inimiga da peste e regra natural da humanidade. Nêmesis não era, como lhe contaram na escola, a deusa da vingança, e sim da organização. E assestava seus terríveis golpes aos homens só quando estes se haviam entregado à desordem e ao desenfreio. A peste procede do excesso. É em si mesma um excesso e ignora a contenção. Tenha isto presente se quer combatê-la com clarividência. Não deem razão a Tucídides, que fala da peste em Atenas e diz que os médicos não ajudavam, porque, em princípio, abordavam o mal sem conhecê-lo. A epidemia adora os buracos secretos. Cerquem-na com a luz da inteligência e da equidade. Na prática, verão que é mais fácil que não engolir a saliva [recomendação médica do século passado para não contrair a peste].
Por último, sejam capazes de se controlar. E, por exemplo, respeitar as normas que escolheram, como o bloqueio e a quarentena. Um historiador da Provença conta que, no passado, quando um confinado conseguia escapar, mandavam que lhe quebrassem a cabeça. Não desejarão isso. Mas tampouco farão pouco do interesse geral. Não farão exceções às normas durante todo o tempo que estas sejam úteis, nem sequer quando o coração apertar.
Armados com estes remédios e virtudes, só lhes restará fazer frente ao cansaço e conservar a imaginação viva. Não devem nunca, nunca mesmo, acostumar-se a ver os homens morrer como moscas, como hoje ocorre em nossas ruas, e que sempre ocorreu, desde que a peste recebeu seu nome em Atenas. Não deixarão de comover-se com as gargantas pretas de que fala Tucídides... Não se moverão com familiaridade entre os que se apartam, inclusive as aves de rapina, para fugir da infecção. E seguirão rebelando-se contra a terrível confusão, em que perecem em solidão, aqueles que negam seus cuidados aos demais, enquanto morrem bem acompanhados aqueles que se sacrificam.
Albert Camus.
Trecho do texto publicado em 1947, em "Les Cahiers de la Pléiade", com o título "Exhortación a los médicos de la peste". Um texto inédito do grande escritor descoberto pelo jornal espanhol El Pais.
Troféu Jenner-Camus.
Esta coluna pretende criar o Troféu Jenner-Camus, visando homenagear os médicos e enfermeiras que estão à frente da corajosa e dura luta em prol de nossas vidas. Só terão direito a voto aqueles que atenderam aos ditames da ciência de permanecer em casa durante a pandemia. Edward Jenner foi o inventor da vacina. Albert Camus, o maior pensador sobre a peste. Assim, unindo a ciência com a literatura, que tanto contribuíram para a consagração da vida e à permanência reclusos em nossas casas.
Troféu Jeca Tatu.
Paralelamente, pretende criar o Troféu Jeca Tatu, destinado às autoridades que se identificam com o maior símbolo do brasileiro doente e indolente. Os grandes responsáveis pelo nosso eterno atraso e pelas mortes que ocorreram em Campo Grande. Sempre irmanados em seu egoísmo e desrespeito ao próximo. Aos surdos que não querem ouvir os gritos de dor e desespero e preferem acalentar o frio e passageiro status da autoridade.