Na Rússia, uso de celulares avança sobre o hábito da leitura de livros
A proporção no metrô de Moscou é de goleada para os celulares, contrariando a fama russa de campeã de leituras de livros
A Copa do Mundo de 2018 já está terminando, mas para mim ficam alguns ensinamentos de observações sobre um país que tem cultura própria, construída a partir do isolamento do resto do mundo durante o domínio mongol, os 300 anos do czarismo e o regime da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), que durou de 1922 a 1991.
Por aqui, a “invasão” da cultura consumista americana, já aceita e totalmente integrada à realidade dos brasileiros, ainda é um fato recente que cresce cada vez mais, apesar do orgulho dos russos pela sua história e da resistência em defesa da sua cultura.
Ao longo do meu trabalho na cobertura da Copa do Mundo na Rússia, onde desembarquei em 11 de junho, observei que a tecnologia dos celulares e o acesso à Internet, embora controlado pelo governo, fazem parte do cotidiano dos russos. Sem dúvida, um belo contraste, se comparado à realidade no regime soviético, quando as pessoas sequer tinham permissão para mudar de cidade e sair do país, nem pensar.
Em Moscou, vi no metrô a predominância do uso de celulares entre russos de todas as idades, mas observei também que muitos, incluindo jovens, preferem o hábito da leitura de livros ao celular enquanto usam o sistema público de transporte.
No trecho do metrô entre as estações Novoslobodskay e Taganskaya, vi uma situação bastante interessante de uma mãe e seu filho criança, idade talvez entre 8 a 10 anos, e ambos focados na leitura de livros, apesar do desconforto da viagem em pé.
Infelizmente, a mãe do menino rejeitou o nosso contato, alegando não falar inglês, além de não expressar nenhuma simpatia em falar comigo. Quando tentei conversar, ela respondeu "niet", "niet", não em russo, e mudou de lugar no vagão do trem junto com seu filho.
A americanização da Rússia, criticada pelo brasileiro Cristiano Alves, um especialista em cultura russa que vive em São Petersburgo, pareceu tão forte com o uso de mídias sociais como Instagram e o VKontakte, o Facebook deles, até aplicativos para marcar encontros, e playlist de músicas americanas que passei a observar quem preferisse a leitura de livros e não o celular.
“Creio que aqui fazemos o que fazem em todo o mundo com os aplicativos de celulares e o acesso às diferentes páginas da web, mas eu prefiro a leitura de livros religiosos”, disse Victoria Vasilyeva, funcionaria do IBC (International Broadcast Center), o Centro de Imprensa da Fifa, em Moscou. "Também gosto de ler Dostoevsky e Mikhail Bulgakov, mas gosto mais de ler livros de autores estrangeiros, por exemplo, Ágata Christie ou Arthur Conan Doyle", ressaltou ela.
Em Rostov on Dom, a jovem Alesya Borovcova, atendente de uma grande lojas de roupas masculinas e femininas, disse que prefere autores clássicos como Tolstoy e Pushkin, e de Anton Chekhov, Nikolai Gogol e Mikhail Lérmontov, não tão conhecidos no resto do mundo. “Gosto muito de livros, e gosto de autores clássicos russos”, afirmou ela.
Pelas minhas observações nos quatro dias seguidos do meu levantamento, a proporção foi de goleada para os celulares, na base de 10 a 3, o que contraria a fama dos russos de serem campeões de leituras de livros com toda a sua grandeza literária desde o século 19 e autores que entraram para a história universal, como Fiódor Dostojévski, Alexander Pushkin e Liev Tolstoy.
“A americanização é um fato, infelizmente, que começou a partir da década de 1990 com a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria e o fim da União Soviética, mas muitos jovens aproveitam a tecnologia para a leitura eletrônica. Com a Internet eles podem ter acesso a qualquer livro que quiserem ler”, explica Cristiano Alves.
De uma coisa tive certeza, se em Campo Grande a estatua do poeta Manoel de Barros foi motivo de pelo menos quatro meses de polêmica e rejeições sobre onde seria instalada, até a conclusão do local, na avenida Afonso Pena, no trecho entre as ruas Rui Barbosa e Pedro Celestino, embaixo de uma figueira centenária, a Rússia faz questão de expressar orgulho dos seus escritores e poetas.
Estátuas de Dostojévski, Pushkin e Tostoy, por exemplo, estão espalhadas por toda a Rússia. Tive a oportunidade de constatar isso em todas as cidades por onde estive na cobertura de jogos da Seleção Brasileira nesta Copa do Mundo, desde Rostov on Don, São Petersburgo, Moscou, Samara e Kazan. Em algumas cidades, como Rostov e Moscou, têm até praças com nome de Pushkin, considerado o fundador da moderna literatura russa.
Natural de Moscou, onde nasceu em 1799, e morreu em São Petersburgo em 1837, Pushkin escrevia suas obras na língua em que os russos escrevem e falam até hoje, ou seja, ele representa para o idioma russo o que Luís Vaz de Camões significa para a língua portuguesa.