“Bolinho do diabo”: preconceito é tão forte que nem o acarajé escapa
Há 22 anos fazendo iguaria, Solange diz que reconhecimento precisa acontecer em luta contra desinformação
“Temos um entrave forte e só com reconhecimento é que vamos conseguir informar mais. Consequentemente, as pessoas vão ver que não é bolinho do diabo”, resume a mãe de Santo Ialorixá e baiana de acarajé Solange Xavier sobre como o preconceito vai até às comidas. Já são 22 anos produzindo os bolinhos e, longe de ser algo banal, o trabalho não é de uma, mas de várias “vidas” envolvidas.
A produção do acarajé vem de longe, como a mãe Sol faz questão de destacar. “É uma iguaria que tem muitos anos. Veio da África e também é uma continuidade da nossa religião. Mas, antes de tudo, é um alimento com história e as pessoas precisam entender isso”. E, em sua história mais próxima, veio através da família baiana.
Mas, assim como ocorre com inúmeros assuntos vinculados ao povo afro-brasileiro, todos os anos de história não impedem que o preconceito seja intenso. E a desvalorização vem logo como consequência óbvia.
Exemplificando como isso impacta na vida cotidiana, Solange relata que vender o acarajé já é complicado de forma geral e se torna ainda mais conflitante quando as mulheres usam as vestimentas adequadas.
A visibilidade é um problema dentro de Campo Grande porque é difícil para as pessoas se apresentarem como baianas, se vestirem como eu faço e vou para todos os lugares porque não me importo com comentários já que é minha fé, explica Solange.
No seu caso, Sol diz que conseguiu construir uma vida enfrentando o preconceito, mas que a mesma situação não é aplicada para todas. “As pessoas encontram barreiras como problemas no serviço. São comentários como ‘você é macumbeira, está vendendo acarajé’ e muita gente associa a uma religião do ‘demônio’, algo que não tem relação”, diz.
Citando situações de pessoas próximas, a psicóloga aposentada relata que algumas de suas filhas da religião não conseguem vender o acarajé por medo de terem problemas no âmbito público.
“Eu chamo elas para fazer e vender, mas existem esses problemas porque trabalham no Poder Público. E tanto elas quanto até quem é secretária do lar não podem contar sobre a religião que está vinculada no nosso caso”, comenta.
Espaço de reconhecimento
É pensando na conscientização que Sol defende o reconhecimento das Baianas de Acarajé de forma pública. Assim, é esperado que espaços e oportunidades sejam criados para que essas mulheres tenham espaço para mostrar a realidade.
“A primeira informação que temos que dizer é que o acarajé é um alimento que veio da África e veio para cá, fim. Foi trazida pelos nossos irmãos negros escravizados e esse bolinho não era feito só para eles, mas comercializado para que eles conseguissem se manter”, descreve.
Historicamente, Solange comenta que o acarajé deixou de ter “apenas” um caráter vinculado à religião e se tornou uma forma de garantir o sustento de muitas famílias. “Nessa época, apesar do acarajé ser parte da religião, nem se falava nisso porque não podia. Hoje, a gente consegue falar dos orixás, mas é isso, ainda tem o preconceito de uma forma absurda e a gente não pode negar”.
A questão é que, idealmente, a relação com as religiões de matriz africana não seria uma preocupação.
“Acarajé significa comer bola de fogo, mas a gente precisa sempre dizer que não é do demônio, que é uma iguaria maravilhosa. Temos todo um ritual e não fazemos o acarajé pelo acarajé, existe o preparo com três dias de antecedência”, explica Solange.
Com tudo isso em mente, Sol resume que o importante é não deixar que o acarajé, assim como outras práticas e crenças vinculadas à matriz africana, continue marginalizado. “Essa iguaria está sendo comercializada a bel-prazer e não está sendo dada a ela o devido reconhecimento”.
Qual é a atual situação?
O ofício das baianas de acarajé integra a lista de patrimônios culturais imateriais do Brasil e se aplica nacionalmente. Em Mato Grosso do Sul, o processo de reconhecer essas mulheres ainda está engatinhando.
Conforme explicado pelo superintendente do Iphan/MS (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), João Henrique dos Santos a salvaguarda do ofício inclui buscas ativas para descobrir onde estão essas mulheres, como aprenderam a produção, com quem, os motivos para não comercializarem e outros questionamentos.
“Ainda enquanto ações de salvaguarda ofertamos uma oficina de elaboração de projetos culturais, ofertamos um certificado para as primeiras baianas cadastradas e, por último, recebemos em Campo Grande a Rita Baiana, presidenta nacional da Associação Nacional das Baianas de Acarajé que agora tem uma sede provisória na Capital”, completa.
E, caso você seja ou conheça alguém que esteja envolvida com a produção do acarajé, o link para a pesquisa do Iphan/MS está disponível clicando aqui.
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