Conceição andava até 20 km e assim fez mais de dois mil partos em casa
Ela fazia do quarto da filha Ivanilde a maternidade para mulheres que viviam longe do hospital
O “ofício” de parteira, passado por gerações, já levou Dona Conceição a longas caminhadas, de até 20 quilômetros por dia. As contas ela ainda lembra com clareza, apesar dos 100 anos completados recentemente. No total, foram 2300 partos na região de Bonito, em mulheres que não tinham acesso ao médico e recorriam à mulher que, mesmo sem ser alfabetizada e ter qualquer equipamento cirúrgico, recebia as grávidas com água morna, tesoura, óleo de rícino ou de oliva e chá de ervas, que ela mesma plantava.
Quem conta a história da parteira é a filha caçula, Ivanilde Padilha, 51 anos, que hoje cuida da mãe que já não escuta bem. Ela relata que foi sua avó, Benedita Ramos de Oliveira, quem ensinou dona Conceição as técnicas de realizar partos naturais em casa. No entanto, apesar do trabalho, não cobrava pelo serviço. “Esse ofício foi passado entre elas. Minha avó ensinava os genros a fazerem os partos porque caso as filhas estivessem longe dela, e entrasse em trabalho de parto, eles poderiam ajudar. Antigamente não existia muita condução, ou ia a pé ou a cavalo”, lembra.
Dona Conceição nasceu na Cabeceira do Apa e se mudou para Bonito quando tinha 30 anos. Foi ali onde realizou o seu primeiro parto em uma chácara perto da cidade. “Ela nunca sentiu medo. Tinha conhecimento, nunca cobrou e, se a mulher demorasse para ter o filho, aguardava. Lembro que as grávidas iam na nossa casa e quando isso acontecia eu já não podia entrar no quarto. Minha mãe usava minha cama para fazer o parto”, conta.
Algumas imagens ficaram na cabeça de Ivanilde. Ela recorda que para realizar o parto, sua mãe colocava um plástico no colchão e cobria com lençol. “O quarto era a maternidade, mas não sujava. A cama era de solteiro mesmo. Já aconteceu de vir duas mulheres ao mesmo tempo. Minha mãe deitava-as, porém tinha gente que preferia ter o bebê sentada. Tinham vezes que meu pai, Cassiano Padilha, auxiliava no parto. Também tinham técnicas e inclusive foi ele quem fez o meu nascimento. Assim como minha mãe, não era alfabetizado".
Quando o bebê ultrapassava da previsão de nascer, a parteira dava um jeito de encaminhar a gestante ao hospital. “Primeiro passava o óleo na barriga, massageava, dava banho quente. Mas se não dava mesmo, pedia pra levarem. Nesses partos que realizou, nunca aconteceu de morrer criança ou mulher. Na nossa família ela fez o parto dos netos”, disse.
Ser parteira era visto como um dom por Conceição, que tinha até um caderno onde registrava cada nascimento, para depois saber quantas crianças ajudou a vir ao mundo. “Ela marcava tudo. Depois de um tempo, um médico que chamava as parteiras da cidade para uma reunião, para ensinar outras técnicas, pegou essas anotações e nunca mais as devolveu. Minha mãe ficou sentida, pois era uma lembrança da sua profissão”, relata Ivanilde.
Vida na roça - A vida foi na roça, plantando, carpindo, colhendo cana e fazendo rapadura para vender. Enquanto isso, o esposo Cassiano trabalha nas fazendas para garantir o sustento da família. “Teve um tempo que moramos em uma chácara que meu pai tinha comprado, fica perto do Rio do Peixe. Lá minha mãe quase nunca parava em casa, vivia fazendo partos. Tinha época que ela saia para fazer um e quando voltada já tinha outro”, lembra Ivanilde.
“A pessoa chamava e ela atendia. Colocava apenas umas roupas na sacola, pegava as ervas para o chá, o óleo e ia embora andando no mato sozinha. Tinha meses que não ficava em casa. Na época, não tinha carro ou moto, o que alguns conseguiam era bicicleta, que ela sentava na garupa, mas a maioria dos locais foi a pé. Andava de dez a 20 quilômetros para chegar no destino”, disse.
Ivanilde conta que todos remédios eram caseiros. “Ela plantava em casa para fazer o chá e amenizar a dor. Já aconteceu de muitas mulheres darem a luz uma atrás da outra. como algumas não tinham muito conhecimento, a minha mãe ficava dias cuidando delas. Tinham pessoas que ficavam com medo de dar banho nos bebês. Ela ficava lavando a louça, fazendo comida, enquanto isso nós ficávamos com meu pai ou com nossas irmãs mais velhas”, conta.
A filha detalha como a mãe fazia para cortar o cordão umbilical das crianças. “Tinha uma tesoura especial, esterilizava com álcool para poder cortar. Depois, amarrava com barbante no cordão e curava o umbigo com azeite. Torrava folha de laranja e usava o pó, em três dias caia”.
Segundo a filha, naquele tempo, todos respeitavam o ofício. “Às vezes, chegava da roça moída e tinha que sair de madrugada sozinha, mas ninguém mexia com ela. Existia respeito, não é como hoje, que é perigoso, muitos criaram um carinho por minha mãe”.
Questionada se aprendeu alguma técnica de parto com sua mãe, Ivanilde diz. “Nunca tive coragem, nem mesmo nos meus partos. Minha mãe tentou fazer o meu, mas não nascia. No terceiro dia de trabalho de parto ela me levou para o hospital e realizaram uma cesariana em mim. Mas tenho uma irmã que chegou a fazer um parto de uma cunhada nossa, porque minha mãe estava longe, e não deu para esperar”.
Mesmo tendo realizado 2300 partos, dona Conceição ainda lembra dos nascimentos que mais a marcaram. “Nunca esquece que fez três partos de gêmeos e da vez que uma menina nasceu com problema nas pernas. Essa ainda mora aqui e sempre lembra da minha mãe, mas não se viram mais”, disse.
Represália - Com o passar dos anos, os médicos começaram a boicotar as parteiras da cidade. A filha caçula relata que sua mãe sofreu represália e parou com a profissão por sentir medo de ameaças. “A represália foi forte, ameaçaram e ficamos com medo”, diz. Tem cerca de 25 anos que dona Conceição deixou de ser parteira.
Atualmente, mesmo com os 100 anos, Ivanilde diz que a mãe “arruma” o bebê na barriga. “Quando as mulheres sentem desconforto, dor, passam aqui em casa e arrumar. Ela coloca o neném no lugar. Tem gente que vem passando mal e depois do procedimento, sai sem dor”.
Outra habilidade de dona Conceição, segundo a filha, é saber o sexo da criança sem mesmo fazer um ultrassom. “Ela diz que o menino fica com as costas viradas para a barriga da mãe e dá para sentir porque fica duro. É menina quando apalpa e a barriga está macia, é raro errar. Antigamente a lua também ajudava. Quando o parto seria na lua cheia ou minguante nascia homem, quando era lua nova era mulher”, conta.
Homenagem - A história de dona Conceição fez com que o grupo Mães de Bonito, criado há dois anos após um evento sobre parto humanizado na Defensoria Pública do Estado, realizassem um bate-papo na cidade para conversar e homenagear a parteira. O encontro reuniu os moradores da região.
Dona Conceição tem 15 filhos, 65 netos, 26 tataranetos, mas não sabe a quantidade de bisnetos que possui. “As meninas de Bonito acharam minha mãe e gostam de conversar com ela, foi emocionante", comenta a filha.
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