De militar turrão a avô doçura, André deixou 100 anos de histórias
André Ragalzi lutou na 2ª Guerra Mundial, recebeu diversas homenagens pelo feito e faleceu na semana passada
O avô com jeito ‘turrão’ que no fim da vida se transformou numa figura mais doce era um ótimo narrador de histórias. Nelas, André Ragalzi contava ao neto Vinícius Fernandes, de 35 anos, sobre a guerra que presenciou na linha de frente. Aos 100 anos, o ex-combatente da FEB (Força Expedicionária Brasileira) se despediu da vida, que hoje é narrada a partir da perspectiva de Vinícius.
Natural de Aquidauana, André faleceu na quinta-feira (29) após sofrer parada cardíaca. O homem deixa a viúva Júlia Fernandes Ragalzi, 11 filhos, 20 netos e 24 bisnetos. Tenente reformado, André defendeu o Brasil na 2ª Guerra Mundial, lutou contra o regime nazifacista e integrou o 1º esquadrão da FEB enviado à Europa.
Antes de ingressar no serviço militar, André vivia com a família em Aquidauana. No município, ele ajudava os pais a cuidar da fazenda e assim seguiu até completar 18 anos. Ao atingir a maioridade, ele começou no serviço militar em Bela Vista, a 324 km de Campo Grande.
Desse cenário, conforme Vinícius, surgiram as primeiras histórias que André contava em detalhes. “Ele serviu por um ano e dali surgiram várias histórias de ronda na beira do Paraguai. Ele conta que tinha um paraguaio bravo que estava matando em Bela Vista. Eles o trouxeram preso. Meu avô brincava, dizia que preferiu ir para guerra do que enfrentar esse paraguaio. Ele lembrava o nome dos amigos, dos comandantes e contava certinho as histórias”, fala.
Apaixonado pelo exército, André, diferente de alguns soldados, quis ir para guerra por livre e espontânea vontade. O representante comercial sabe em detalhes como foi a saída do avô de Mato Grosso do Sul. “Ele conta que chegou 40 vagões para pegar os militares para ir ao Rio de Janeiro. Ele contou que os soldados eram colocados no vagão e que o respirador era trancado para ninguém sair”, fala.
A caminho da Europa, André deu um jeito de ‘fugir’ das tarefas dentro do navio. “Ele tirava guarda, contava rindo que todos os serviços que o colocavam, ele fugia. Ele falava: ‘Eu tô indo para uma guerra, não vou ficar me matando aqui’. Foi um mês dele nesse jogo de gato e rato com os comandantes”, conta.
A coragem do ex-combatente é elogiada pelo neto que frisa o quanto o avô sentia orgulho em ter atuado na guerra. “O que ele se orgulhava muito é que ele era linha de frente, ele se orgulha de ter participado. Ele contava numa euforia que você ficava fascinado”, destaca.
Na guerra, André ficou nas trincheiras de onde escapou da morte. Atirador de ponto 50, ele ficou desacordado três dias após escapar de uma granada que explodiu segundos após ele trocar de posição na trincheira.
Da enfermaria, ele voltou para a linha de frente e durante 1 ano e 11 meses André seguiu lutando. Das conquistas mais marcantes que André participou estava a batalha de Monte Castelo. “Ele fez parte da tomada do Monte Castelo onde ficava a companhia de guerra do inimigo”, relata Vinícius.
Ao retornar para o Brasil, André trouxe somente como lembrança duas armas alemãs que vendeu, pois na época ofereceram um bom preço. Além disso também trouxe uma dor que o acompanhou pelo resto da vida. “Ele fala que a única herança que trouxe da Alemanha foi a dor no joelho, porque quando estava fazendo ronda a neve batia no joelho”, diz.
A princípio, o País recebeu os combatentes com toda a pompa merecida, contudo, não demorou e eles foram esquecidos. É o que afirma o representante comercial.
"Chegando aqui não teve tanto reconhecimento. Teve a homenagem de início e depois eles foram esquecidos. Em 1963, ele passou para a reserva e foi reconhecido como ex-combatente. Em 1988, ele foi promovido a tenente. Não deram a oportunidade deles seguirem carreira, foram dispensando os combatentes e isso foi uma revolta muito grande. Ele só ficou em paz em 1988 quando foi reconhecido como tenente”, conta.
Homem amoroso - Depois do primeiro casamento, André se casou pela segunda vez. Em Jardim, ele terminou os dias ao lado da esposa Júlia Fernandes. Segundo Vinícius, o avô era muito carinhoso com ela. “Ele foi amoroso com a minha avó até os últimos momentos dele. Ele abria o olho e perguntava da minha vó”, comenta.
Para quem há três semanas estava cortando o cabelo do avô, é difícil falar sobre o mesmo sem ficar emocionado. Entre choros e risos, Vinicius lembrou a figura que André era. Apesar do luto, o representante comercial sabe que o avô partiu em paz. “Ele descansou”, resume.
Na última década, André seguia lutando, mas de forma diferente de quando esteve na Alemanha. O homem dependia de marca-passo, ponte de safena e vez ou outra tinha crises respiratórias. “Não era de hoje que ele dava susto”, declara o neto.
No dia 29 de setembro, o ex-combatente descansou e no enterro recebeu a última homenagem do exército. Comandantes de Jardim e Aquidauana participaram do ato, que também contou com a presença de soldados. André foi enterrado com a boina que amava, a bandeira do Brasil e próximo ao túmulo da mãe.
“Foi bonita a homenagem lá do céu ele deve ter sorrido de orelha a orelha. No cemitério houve a salva de tiros, foi lida a canção dos ex-combatentes da guerra. A homenagem foi digna do guerreiro que ele foi”, conclui.
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