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Comportamento

Na favela, Deus quem vai proteger do coronavírus, diz comunidade

Apesar das informações, moradores da Favela do Mandela não encontram meios eficientes de se prevenirem contra o coronavírus

Lucas Mamédio | 19/03/2020 06:12
Dona Maria José sabe das notícias, mas tem dificuldade em se previnir (Foto: Marcos Maluf)
Dona Maria José sabe das notícias, mas tem dificuldade em se previnir (Foto: Marcos Maluf)

A Favela do Mandela está encravada no meio do bairro Izabel Garden, região norte de Campo Grande. É um microcosmo cheio de gente diferente, lutando por uma vida minimamente digna, apesar da preocupante condição de vulnerabilidade na qual vivem.

Diante da pandemia mundial do novo coronavírus, doença de fácil transmissibilidade, altamente perigosa para idosos e pessoas já doentes, o Lado B foi saber qual o nível de consciência dos moradores da favela em relação ao vírus e quais medidas estão sendo tomadas para evitar um possível contágio no local.

Chama a atenção o senso de comunidade dos moradores. Do momento em que chegamos, até irmos embora, sempre contamos com alguém nos acompanhando e apontando o eventual drama de cada morador.

Adrielly da Silva, mãe de três filhos, só tem notícias do coronavírus pela televisão ou por meio daquilo que chega no whatsapp. A preocupação dela, e de muitos moradores, parece ser proporcional aos reflexos causados na prática pela doença, na vida cotidiana mesmo.

Adrielly está evitando deixar os filhos na rua (Foto: Marcos Maluf)
Adrielly está evitando deixar os filhos na rua (Foto: Marcos Maluf)

Por exemplo, Adrielly se atentou mais a gravidade do cenário, depois que as aulas municipais foram suspensas pelo prefeito Marquinhos Trad. Antes, existia uma distância maior entre os desdobramentos nacionais e internacionais e o dia a dia dela.

“Agora estou evitando deixar meus filhos em qualquer lugar, eles estão ficando mais em casa”, afirma a moradora, informando a única medida tomada até o momento.

As crianças são menos afetadas pelo novo coronavírus por razões ainda desconhecidas pelos cientistas, mas são igualmente infectadas, além de serem vetores da doença, o que explica o fechamento de escolas em vários países.

Se juntando a conversa, traço característico dos moradores, Sandra Oliveira Paredes, levanta um questionamento importante num cenário em que, muitas vezes, as crianças pequenas só têm a mãe por elas. “Tá bom, elas podem ser mais resistentes, mas quem cuida se elas pegarem o vírus? Quem tem que ficar com elas até sararem?

 “O álcool em gel está quase o preço de um botijão”, diz Francielly Gabriela ao explicar a razão pela qual ainda não comprou o produto doméstico mais eficaz para assepsia das mãos.

Francielly quer mais assistência do poder público (Foto: Marcos Maluf)
Francielly quer mais assistência do poder público (Foto: Marcos Maluf)

Francielly também reclama da falta de orientação presencial ou específica do poder público. Para ela, isso é necessário pois o modo como a comunidade vive é mais propenso ao alastramento caso alguém contraia. “Aqui temos muitas crianças brincando na rua o tempo todo, pegando em tudo, muita gente doente, idosos, se um vírus desse chega aqui, só Deus na causa”.

Renata Ana dos Santos, mãe do Davi Lucas de dois aninhos, que tem deficiência intelectual, se exaspera não só pelo falta de assistência no local, mas pelo fato de não encontrar produtos de esterilização nos postos de saúde. “Fui em dois postos e não tinha mais álcool em gel e nem máscaras”.

Renata admite, então, que fez algo não recomendado pelos especialistas pela total ineficácia e riscos à saúde: o álcool em gel caseiro. “Vi na internet como se faz e fiz. Estou usando nas mãos e nos braços”. Claro que explicamos para Renata quais poderiam ser as implicações daquela atitude, baseado em nossas conversas diárias com especialistas. Renata se comprometeu a deixar de usar.

Todas as mulheres descritas até o momento colocam a vida dos filhos em primeiro lugar, a preocupação nasce de um instinto de proteção que atravessa elas mesmas. É curioso como mais de uma vez a preocupação só parecia vir à tona quando perguntávamos dos filhos.

Renata com o filho Davi Lucas no colo (Foto: Marcos Maluf)
Renata com o filho Davi Lucas no colo (Foto: Marcos Maluf)

Dentro do grupo de risco está o espirituoso seu Jorge, de 62 anos. Dono de uma risada falhada, alta e longa, Jorge Cristiano Cristiano Souza, a despeito de estar acompanhando as notícias, diz não estar preocupado. “É uma coisa que não tem solução, a gente tem que conviver com ela (a doença), e que atinge todo mundo, rico e pobre”.

Nesse momento começa uma das discussões mais interessantes da nossa visita. Uma moradora grita de lá: “Mas uma coisa a gente tem que dizer, essa doença foram os ricos que trouxeram, é rico que tem como viajar e traz essas doenças pra cá”.

Ao que seu Jorge responde: “A senhora acredita em Deus? Já leu a bíblia? Tá tudo lá em apocalipse. É pra todos”, se referindo ao livro da bíblia que aborda o fim do mundo. O fatalista seu Jorge também é hipertenso, vulnerável duplamente, portanto.

Seu Jorge se apega na fé para fugir do coronavírus (Foto: Marcos Maluf)
Seu Jorge se apega na fé para fugir do coronavírus (Foto: Marcos Maluf)

Bem mais preocupado que Jorge está seu Flávio Pereira de 65 anos. Dono de uma borracharia na frente da favela, o morador está aflito por não conseguir fazer a limpeza correta das mãos. “A gente não pode parar de trabalhar, né? Então toda hora estou mexendo com graxa, coisa suja, fica difícil passar álcool na mão”.

"É Deus quem nos protege", diz seu Flávio (Foto: Marcos Maluf)
"É Deus quem nos protege", diz seu Flávio (Foto: Marcos Maluf)

O borracheiro também está evitando ir ao centro da cidade. “Ia no banco hoje, nem vou para evitar aglomeração.

Nos despedimos de Flávio depois da breve entrevista  quando, com carro já em movimento para irmos embora, ele nos faz um sinal. Paramos, ele corre cerca de 10 metros para nos alcançar e diz: “Olha meu filho, bota aí na sua reportagem que é Deus quem vai nos proteger, que é Deus quem protege essa comunidade, mais ninguém”.

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