Panos, jornais e até miolos de pão são usados na falta do absorvente
Projeto discute a falta de "dignidade menstrual", em que mulheres que não têm acesso a itens básicos
Ana Paula Alves de Souza, de 35 anos, moradora do Morro do Mandela, região periférica de Campo Grande, desistiu de estudar por causa da menstruação. “Eu deixei de estudar no 7º ano porque eu não tinha absorvente pra ir pra escola. Eu usava paninhos, mas até a hora do almoço, ele não segurava. Na hora do recreio, eu ficava dentro da sala, não saia com os colegas. Nenhuma menina deveria desistir do sonho por causa de menstruação”, relata.
A dificuldade de Ana Paula não é uma situação isolada. De acordo com a vereadora Camila Jara (PT), dentro do presídio feminino, por exemplo, também é de falta de dignidade menstrual de quem tem útero. “Há relatos de mulheres que usam miolo de pão ou jornal dentro dos presídios. Com isso, elas acabam suscetíveis a doenças, vaginoses, e consequentemente, ainda sem acesso à tratamento adequado”, comenta.
O assunto tem o nome de dignidade menstrual, que é a garantia de que toda pessoa com útero tenha acesso à itens de higiene básicos para lidar com a menstruação.
O relato de Ana Paula foi fruto de uma ação feita pela vereadora no Morro do Mandela. Nas redes sociais, comentários de outras mulheres, falam sobre como mães ou avós também passaram por essa realidade, além da dificuldade também no quesito acesso à informação sobre a saúde da mulher em geral.
De acordo com Camila, a estimativa é que 28% das mulheres brasileiras tenham tido dificuldade em ter acesso à absorventes em algum momento da vida.
Não há dados específicos em torno desse assunto. Os poucos estudos que são feitos, são estimativas feitas com base em recortes de gêneros, idade, ou renda básica.
Em âmbito nacional, um estudo que se aproxima desse assunto e aborda o tema foi a pesquisa feita pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). No relatório intitulado “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, foi constatado que 713 mil meninas sequer tem acesso a banheiro ou chuveiro em casa.
Nesse relatório, também foi constatado que em famílias nessa situação, em geral meninas entre 10 e 19 anos não têm influência sobre o orçamento familiar, e assim, sobra pouca ou nenhuma renda para ser utilizada com absorventes.
Em Campo Grande, dado do Cadastro Único apontam 72 mil mulheres que recebem algum auxílio social por falta de renda, o que consequentemente significa que um pacote de absorvente já é um peso no orçamento.
Mas os dados são defasados, já que esses números não faz diferença entre homens trans que ainda menstruam, nem meninas em idade escolar também em situação de vulnerabilidade que precisam do absorvente. Assim, é de se esperar que os números reais de quem vive em pobreza menstrual sejam ainda maiores.
“A menstruação ainda é um tabu. É visto como nojento, como uma vergonha. A menina e a mulher ficam com vergonha quando a roupa mancha, há quem ache que é frescura. Mas é algo natural, algo que faz parte da saúde da mulher. Isso, unido à falta de acesso que muitas têm ao absorvente, só torna o debate mais importante”, reforça.
O assunto dignidade menstrual vem ganhando repercussão no Brasil por meio de atuação de ONGs ou projetos de caridade, que arrecadam de forma espontânea absorventes a serem distribuídos para quem mais precisa.
Uma dessas iniciativas aqui em Campo Grande aconteceu por meio do movimento Girl Up Glauce Rocha, que faz várias ações para arrecadação de absorventes para distribuição para quem precisa. Também dentro de uma unidade de saúde, na USF Mata do Jacinto, estagiárias de medicina e enfermeiros tiveram a iniciativa de arrecadar absorventes e disponibilizar às pacientes através de um dispenser de PVC confeccionado pelas estagiárias.
Mas de acordo com a vereadora, a questão precisa se tornar política pública. “Essas iniciativas são muito importantes, mas a gente precisa que isso seja uma política pública, é questão de saúde. A taxação do absorvente é ainda como cosmético, o que o torna mais caro. No Rio de Janeiro, por exemplo, já foi revertida essa situação, e o absorvente já é taxado como produto de higiene. Além disso, é necessária também a distribuição gratuita em postos de saúde e na rede de ensino, organizadas pelo poder público. E para todo mundo que tem útero, incluindo homens trans que ainda menstruam”, reforça.
Camila ressalta que em média, uma mulher gasta R$ 3 mil reais por ano apenas em absorventes. “Enquanto a renda de muitas não passa de um salário mínimo. Ou seja, mulheres com uma renda assim, precisariam pagar três vezes mais que o próprio salário só em absorventes”, comenta.
Camila assina a PL de Dignidade Menstrual, que vai à votação na Câmara esta semana. Na esfera pública, o assunto já foi trazido à pauta por deputados federais, como Marília Arraes (PT), Dagoberto Nogueira Filho (PDT). “O assunto ainda é tão tabu, que eles foram rechaçados por internautas quando fizeram a proposta”, relatada Camila.
Em Mato Grosso do Sul, o deputado estadual Pedro Kemp (PT) é um dos apoiadores, além da iniciativa de Camila em âmbito municipal.
“O assunto ainda é muito mais amplo. Conseguir fazer com que o acesso à absorventes seja uma política pública é apenas o primeiro passo. A dignidade menstrual está dentro de dos objetivos de desenvolvimento sustentável estabelecido pela Organização Nacional das Nações Unidas, dentro do assunto saúde da mulher. Dentro do assunto dignidade menstrual, também entra acesso à saneamento, água limpa. Ainda temos muito a fazer”, expressa.
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