Quando mãe mestre partiu, ficou ao filho o abraço pelas ruas de quem a admirava
De Mariluce Bittar ficaram os livros na estante, junto de tantos prêmios e homenagens, a coleção de corujas pela casa, a assinatura tatuada no filho e o abraço de desconhecidos que a conheciam tão bem. Há exatos dois anos, Campo Grande, o Estado e o Brasil se despediram de uma professora, mestre, doutora, mãe e eterna aprendiz da vida. Foi rápido, três meses depois do diagnóstico de um tumor no cérebro, Mariluce se despediu da vida.
"O que ficou de quem partiu?" Quem responde é o filho caçula, de 23 anos, André Bittar Falcão. Acostumado a ser parado e questionado - quando assim como eu - as pessoas ligam o sobrenome dele à grande pessoa da mãe. Era 15 de novembro de 2013 quando André, que é fotógrafo, se preparava para registrar um casamento. Já tinha descido com os equipamentos, mas voltou para casa para pegar o dinheiro que estava destinado para abastecer.
"Ela estava fazendo exames, no Proncor, em Campo Grande. Eu voltei para pegar o dinheiro, bati na porta do quarto da minha irmã. Elas não abriram... Eu as vi chorando e elas falaram do tumor. Em outubro ela tinha ido à feira, eu fiz fotos dela lá, viajado para Belo Horizonte..." narra André como quem à época se recusava a acreditar.
Mariluce vinha sentindo formigamento nas mãos, dias depois do diagnóstico, foi internada e operada no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Ficou lá do dia 21 de novembro até 23 de janeiro. No início de 2014, André raspou a cabeça como quem diz à mãe que ela, visivelmente, não estaria sozinha nem na queda de cabelos.
"A gente acreditava muito na recuperação dela. Ela fez um trabalho muito legal de fisioterapia. A cirurgia, a gente achou que foi um sucesso e na verdade foi, mas o cérebro é complicado e o dela foi câncer no cérebro", conta o filho.
De volta a Campo Grande, na cadeira de rodas que Mariluce ia, levada por André, às reuniões da universidade. À frente do mestrado e doutorado da UCDB, a professora também cursava Filosofia à noite. Entrava às 7h da manhã em sala de aula, saía 18h para trocar de lugar e de mestre, virava aprendiz. Em casa, segundo os filhos, mesmo chegando 11h da noite estudava até 2h da manhã.
A família estava em casa, no meio das comemorações do aniversário de Mariluce e da mãe. A professora fez 54 anos no dia 7 de fevereiro, a mãe aniversariava na manhã seguinte, quando cortaram o bolo em homenagem às duas. No dia 9, Mariluce apresentou espamos pelo corpo, era uma convulsão. Foi levada para o Proncor onde permaneceu os nove últimos dias e depois partiu.
"O que ficou? A minha mãe era muito humanista. Ela tinha o trabalho dela, eu, a Carime [irmã de André]... Tinha o lado profissional dela, mas pensava muito mais no próximo do que nela mesma", diz o filho. Os exemplos disso acompanharam André e Carime durante toda criação.
"Uma cena que eu lembro é dela parando o carro para a gente socorrer uma senhora que havia caído na rua... Ela trazia as alunas para almoçar em casa e voltar para a faculdade, para elas não gastarem dinheiro com almoço...". Estes são alguns de tantos exemplos que Mariluce deixou na memória de André.
Ligada aos movimentos políticos, à comunidade negra e indígena, até quando a câmera de André foi roubada, a devolveram porque no cartão de memória encontraram fotos da professora Mariluce. "Lá no Noroeste, me ligaram dizendo que tinham achado a minha câmera. Chegaram até mim, porque viram a foto dela. Me entregaram com cartão, case e tudo", recorda André.
Mariluce chegou ao pós doutorado e pregava como ninguém a importância da educação. Era o mais forte exemplo da teoria que ensinava. "Ela acreditava na força do estudo. Saiu de uma base familiar pobre, de seis irmãos. Ela acreditava que o estudo transforma a vida das pessoas, mas ela conversava com todo mundo no mesmo patamar. Não tinha isso de ser diretora, coordenadora... Ela era amiga da faxineira, do guardador de carro..."
Quando estava em casa, era na biblioteca que a mãe costumava ficar. No mesmo local onde hoje André tenta resumir em palavras o que ficou de uma grande mãe.
"Numa pauta, uma vez, de uma missa quilombola, uma senhora me perguntou: você é filho da professora Mariluce? Posso te dar um abraço para sentir um pouco dela? E eu esqueci de tudo. Para mim, aquilo foi demais", relata.
Frequentemente André, pela idade e carinha de novinho, ouve indagações "com quem você mora?" "como você aguentou?" e a resposta, está na ponta da língua: "A pessoa que ela foi, ajuda a gente hoje".
Se passou rápido demais? Os dois anos para André voaram. "Demais, demais. Uma coisa eu falo: eu acordo com vontade de fazer as coisas, mas durmo com muita saudade".
Mariluce tinha um poder, avaliado pelo filho, incalculável de conquistar as pessoas. Ela sempre acreditou na cura, mas percebeu que a fraqueza chegava ao corpo. Aos filhos, ela pediu que doassem todas as roupas e acessórios do armário para a Comunidade Tia Eva. Pedido prontamente atendido. A biblioteca, a mesma onde a nossa conversa acontece, hoje é vazia perto do que foi um dia, abarrotada de livros. Parte do acervo os filhos doaram para a biblioteca da UEMS. Uma forma de levar adiante o que ficou de Mariluce Bittar.