Genética canina e a sociedade multiespécie
Os cães foram a primeira espécie a ser domesticada pelo homem e, ao longo dos últimos 20 mil anos, gradativamente conquistaram espaço entre os seres humanos. Essa ocupação não foi apenas em termos numéricos, mas também em diversidade de nichos: ao longo dos séculos, a espécie que foi domesticada para auxiliar na proteção da aldeia passou a desempenhar funções tão distintas e especializadas como a busca e entrega da caça (retrievers), a indicação do local onde está o alvo (pointers), a procura pelo alvo por meio do olfato (farejadores), o controle de pragas com a detecção e caçada de ratos (terriers), entre outras habilidades funcionais.
No entanto, como sempre ocorreu com as espécies Homo sapiens e Canis lupus/Canis familiaris, mudanças nas necessidades da primeira geraram adaptações da segunda. Gradativamente, as primeiras raças caninas criadas pela mão do homem, voltadas à caça, foram sofrendo adaptações e originando outras raças para as mais diferentes interações com nossa espécie. Algumas raças com função original na caça passaram a ser utilizadas como cães-guia (para pessoas com deficiência visual) e cães terapeutas.
Outras habilidades da caça acabaram originando cães detectores de corpos em decomposição, substâncias ilícitas e até mesmo infecções em amostras biológicas. Em qualquer exemplo, a habilidade atual só é possível devido à constituição genética original da raça – retrievers foram selecionados para serem ‘gentis’ com a caça, e não a danificar; farejadores foram selecionados pela sua maior habilidade de faro.
Assim, embora a sociedade moderna não possua mais a cultura da caça de forma disseminada, as características originais de várias raças acabaram por ser extremamente úteis em novos contextos.
O homem do campo que trabalha com grandes rebanhos é muito auxiliado por cães de pastoreio, com muitos animais trabalhando de forma extremamente especializada. Os exemplos de interações que beneficiam o ser humano são inúmeros, e é inegável que um cão da raça correta possui uma chance muito maior de desempenhar uma função especializada, passando por um período menor de treinamento, do que um cão sem raça definida.
Ainda assim, apesar de serem os responsáveis por este cenário, cinófilos do mundo inteiro têm enfrentado grandes desafios nas últimas décadas. A cinofilia é formada por vários tipos de ‘profissionais’, o que não é demérito exclusivo desta atividade. Todos nós já ouvimos falar de médicos antivacina, de professores que não se importam com aprendizado do aluno, de cientistas que valorizam mais suas crenças do que o método científico e de engenheiros que são ruins em cálculo.
O preconceito contra a cinofilia, entretanto, parece ser expressivo por dois principais motivos. Um deles está relacionado ao cinófilo: a formação do profissional, quando ocorre, é feita de forma não tradicional e sem regulamentação, o que leva um grande número de pessoas a serem apenas “acasaladores” de cães, e não “criadores”. Certamente esse é o primeiro fator que alimenta o preconceito da sociedade contra quem desempenha essa função – que, afinal, envolve inúmeros casos de maus-tratos divulgados na mídia.
O segundo motivo associado ao preconceito contra a cinofilia é passional, relacionado ao grande amor que boa parte dos seres humanos devota a esses seres de quatro patas. Quando se somam esses fatores ao grande número de cães sem raça definida que vivem em situação de abandono, temos como resultado a negação da cinofilia como uma atividade importante e essencial para a sociedade contemporânea, que na verdade se beneficia em diversas esferas das incríveis habilidades funcionais dos cães de raça.
Uma grande parcela desse embate tem origem no isolamento histórico entre a ciência e a cinofilia. Na verdade, a comunidade acadêmica conhece bem esse tipo de isolamento: a “torre de marfim” acadêmica começou recentemente a ser questionada, com a popularização da ciência sendo valorizada apenas nas últimas décadas. Além disso, o campo de pesquisa do melhoramento genético animal, tradicionalmente voltado a animais de interesse zootécnico (carne, leite, etc.) no mundo inteiro, quando aplicado a caninos, se encontra, em países do primeiro mundo, em grande desenvolvimento.
A partir do final do século passado, essas sociedades perceberam que boa parte dos problemas enfrentados pela cinofilia poderia ser mitigada por meio de trabalhos colaborativos, com a aproximação entre conhecimento científico e parcela da sociedade. Atualmente, esses países possuem quantidade substancial de produção científica nesse campo, assim como diversas normas para a criação de cães de raça, no sentido da sua saúde e do seu bem-estar, além da preservação das raças.
No Brasil, essa é uma área praticamente inexplorada, e um dos motivos para isso é a pouca importância dada ao tema nos cursos de graduação: disciplinas como genética e melhoramento genético não são nem mesmo ofertadas em grande parte dos cursos de Medicina Veterinária. Nesse sentido, nossos projetos de pesquisa no grupo de Melhoramento Genético Animal (MegaGen), supervisionados pelo professor Jaime Cobuci, vinculados ao Departamento de Zootecnia e ao Programa de Pós-graduação em Zootecnia da UFRGS, estão dando os primeiros passos no país na pesquisa em melhoramento genético canino. O grupo conta com o auxílio financeiro da CAPES, do CNPq e do Instituto Premier Pet.
Além da pesquisa, atuamos também na extensão e no ensino. Desde 2019, passou-se a abordar minimamente o tema ‘melhoramento genético canino’ nas disciplinas da Medicina Veterinária e Zootecnia/Agronomia. Ações de extensão vêm sendo desenvolvidas com foco em levar informação tanto a profissionais da área como a criadores de cães de raça.
Em termos científicos, a exploração desse campo no nosso país é um benefício inegável. O objetivo maior do grupo, porém, é disseminar a informação em todas as esferas da sociedade. Criadores e profissionais bem informados irão promover uma criação de maior qualidade e voltada ao bem-estar animal. O público com interesse em cães de raça também irá entender o que deve exigir do criador ao adquirir um cão e, ao mesmo tempo, se espera que ele possa participar ativamente da melhoria na qualidade da criação. Afinal, se a coevolução das duas espécies transformou o cão no melhor amigo do homem, a moral e a ética humanas devem atuar para que este retribua ao menos um pouco dessa amizade.
(*) Fabiana Michelsen de Andrade é pós-doutoranda (CAPES/PNPD) do grupo de pesquisa MegaGen, do Departamento de Zootecnia, e atua como coordenadora do grupo Genética Canina, que trabalha com a divulgação científica e o aconselhamento genético a criadores de cães.