IA, redes sociais e o resgate da esfera pública
Como espaço de diálogo, justiça social e inovação democrática
A previsão de que 30% dos postos de trabalho humano podem ser eliminados pela inteligência artificial até 2027, anunciada por Dario Amodei, CEO da Anthropic, dona da IA Claude e principal concorrente do ChatGPT, durante o Fórum Econômico Mundial de 2025 em Davos ressoa como um marco do impacto avassalador da tecnologia em nossas estruturas sociais e econômicas. Como salientado em Davos por Amodei, sem políticas redistributivas e transformações estruturais, a IA intensificará conflitos sociais, expondo a incapacidade das democracias atuais de lidar com as consequências dessa transição.
Contudo, essa previsão não se limita a uma questão de números ou empregos. Ela denuncia o ápice do que Jürgen Habermas chamou de “colonização do mundo da vida”, isto é, a interligação entre “os sistemas dinheiro e poder” que geram patologias que invadem os âmbitos centrais da reprodução social, cultural e psicológica dos indivíduos socializados, desdobrando-se em crises, resistência e inúmeros tipos de protesto.
Habermas, conhecido como o último iluminista, ao longo de mais de 75 anos de trabalho filosófico, argumenta que a democracia tem origem na esfera pública: espaço de deliberação onde cidadãos, embasados na racionalidade comunicativa do mundo da vida, podem construir consensos sobre “as condições para uma vida digna do homem e para a felicidade socialmente organizada”.
No entanto, as grandes corporações tecnológicas, as chamadas big techs, não apenas controlam os fluxos informacionais por meio de algoritmos opacos, mas também sequestram a essência da esfera pública ao assumirem o vácuo deixado pelas antigas mídias e pelos próprios governos. Para Habermas, “a comunicação digitalizada não promove deliberação crítica e reflexiva; ela apenas reforça opiniões ideologicamente convincentes entre os membros de seu próprio público fragmentado”. Como resultado, “fake news não podem mais ser identificadas como tais da perspectiva dos participantes”, perdendo-se a capacidade de deliberação e consenso sob uma base comum de entendimentos, fundamentos da democracia.
Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP, destaca que essas empresas possuem um valor de mercado que supera o PIB da América Latina, o que lhes confere um poder desmesurado sobre economias e democracias globais. Para o economista vencedor do Nobel Joseph Stiglitz, esse poder desproporcional das big techs transforma a autonomia estatal em uma ilusão ao mesmo tempo em que distorce processos democráticos.
Ao promoverem a “plataformização da esfera pública”, as big techs moldam comportamentos, reforçam bolhas informacionais e amplificam polarizações, “criando circuitos de comunicação isolados, nos quais grupos reforçam suas próprias crenças de forma dogmática e rejeitam ideias divergentes”. Nesse contexto, fake news e teorias da conspiração ganham força nas mídias sociais, enquanto as plataformas atacam a “imprensa mentirosa”, promovendo a desconfiança na mídia tradicional. Esse cenário torna o público mais vulnerável a narrativas populistas e antidemocráticas, colonizando a esfera pública e o espaço crítico e deliberativo.
Como consequência, Habermas destaca que “os sinais de regressão política são visíveis a olho nu”. A exclusão no sistema de poder e a impotência dos cidadãos minam a legitimidade democrática, o que se constata, por exemplo, no aumento de abstenções, transformando a democracia em um rótulo vazio. A apatia e o desengajamento enfraquecem a esfera pública, criando um ciclo em que governos ineficazes alimentam a alienação cidadã e a crise institucional.
Para Habermas, essa incapacidade de reagir às crises democráticas se deve ao “derrotismo político”, que atinge não apenas a classe política e acadêmica, mas também os próprios cidadãos.
Segundo ele, o fracasso coletivo é alimentado pela falsa crença de que sistemas econômicos e tecnológicos são autônomos e incontroláveis. Isso não apenas cria “políticas paralisantes”, mas também faz com que “a população perca a confiança em um governo que apenas simula a capacidade e a disposição de agir”.
Joseph Stiglitz, vencedor do Nobel de Economia, complementa essa visão. Ele argumenta que “o verdadeiro funcionamento democrático depende da mobilização coletiva da sociedade civil para contrabalançar os interesses especiais”. Stiglitz observa que, “enquanto grupos poderosos estão altamente engajados em moldar políticas públicas para seus próprios interesses, o restante da população frequentemente se desengaja, acreditando que sua participação não fará diferença”. É exatamente essa falta de engajamento da maioria que abre caminho para que grupos poderosos dominem e distorçam a democracia.
A superação dessa crise vai além da regulamentação das big techs ou do aumento da transparência algorítmica. Ela exige uma reinvenção do papel do governo como um facilitador da esfera pública e da democracia deliberativa.
Habermas propõe a criação de “canais facilitadores de comunicação”, que transformem o governo em uma rede social deliberativa — um espaço onde a administração pública não apenas gerencie a sociedade, mas também atue como mediadora de diálogos democráticos e consensos coletivos.
Para tanto, é preciso explorar o potencial emancipatório e democrático das sociedades digitalizadas. Isso inclui a difusão de informações, o empoderamento dos cidadãos, a descentralização e a horizontalidade em formas de auto-organização política e mobilização cidadã. Em vez de perpetuar “ruídos selvagens em câmaras de eco fragmentadas e que giram em torno de si mesmas”, devemos restaurar uma sociedade de interesses comuns, e não uma “sociedade de singularidades”.
Três pilares sustentam esse modelo:
Transparência e acessibilidade total: Governos devem adotar tecnologias que permitam aos cidadãos monitorar, influenciar e contribuir diretamente para as decisões administrativas, com dados claros e abertos.
Deliberação inclusiva: A criação de espaços governamentais dedicados ao diálogo contínuo entre cidadãos, instituições e especialistas, rompendo com a racionalidade estratégica tradicional de mercado.
Autonomia cidadã: Uma gestão de dados bottom-up, priorizando as necessidades dos cidadãos por meio de inputs deliberativos e promovendo a educação tecnológica para capacitar a população a avaliar e atuar com base em informações críticas.
Essa transformação não é apenas uma modernização da administração pública, mas uma redefinição de sua essência – e não dos seres humanos. O governo como uma rede social-pública deliberativa seria o oposto das plataformas dominadas pela lógica de mercado. Ele operaria como um ambiente digital que fomenta o diálogo racional comunicativo, a construção coletiva de soluções e a inclusão de perspectivas diversas.
A previsão de Davos sobre a eliminação de 30% dos empregos humanos até 2027 não é apenas um alerta sobre os perigos da racionalidade instrumental, mas também uma oportunidade para repensar profundamente as instituições democráticas.
Transformar o governo em uma rede social deliberativa não é uma utopia inatingível. É uma resposta necessária — e possível — para resgatar a esfera pública como espaço de diálogo, justiça social e inovação democrática. A última chama iluminista nos inspira a construir uma sociedade que transcenda ideologias e partidos, pautada na liberdade, na diversidade de ideias e no pensamento crítico. Uma democracia verdadeiramente coletiva, onde o bem comum seja definido e vivido por todos, como expressão genuína da humanidade.
(*) Marina Thereza Santos de Souza Özdemir é doutoranda da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.