Mais médicos, mais saúde
Diferentemente do acentuado corporativismo revelado por parte minoritária da categoria médica – ligada, em sua maioria, a empresas de saúde privada –, expressivos setores dos médicos e demais segmentos da sociedade civil brasileira têm-se manifestado espontaneamente, nas últimas semanas, a favor do programa Mais Médicos pelo Brasil afora. Até a grande mídia, depois de promover uma bizarra cruzada contra essa importante iniciativa do Governo Federal, começou a mostrar o outro lado dos fatos: a presença de médicos estrangeiros em nosso sistema de saúde, sua dedicação, seu respeito ao paciente e sua relação harmoniosa entre os demais profissionais.
Como tudo que é inovador, obviamente, um programa transformador de nossa perversa realidade social gera sempre controvérsias, sobretudo nos setores privilegiados de nossa população, ciosos de suas benesses, desde antes da República existir. Por conta disso, fiz contato com amigos que têm alguma convivência com médicos estrangeiros e me surpreendi com seus depoimentos. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde fazemos fronteira com dois países irmãos, Paraguai e Bolívia, há muitos profissionais estrangeiros que são uma referência para amplas camadas da população: pelo menos um pediatra na capital e três generalistas no interior, inclusive na fronteira, todos ligados ao SUS (Sistema Único de Saúde), aprovados em concurso público com boa pontuação, a despeito das dificuldades idiomáticas e da legislação específica.
Assim como em reveladora reportagem de um influente diário paulistano, depoimentos de famílias atendidas na ESF (Estratégia de Saúde da Família, antigo PSF) do interior do estado dão conta de terem um atendimento igual ao realizado em consultório particular, onde o médico dedica mais tempo que os tristemente clássicos cinco minutos por paciente da saúde pública. Além da dedicação ao paciente, os chamados médicos estrangeiros solicitam exames, encaminham a especialistas, solicitam acompanhamento pela equipe da ESF, fazendo com que os princípios do SUS sejam de fato cumpridos pelo gestor. Isso, é claro, não significa a grande maioria dos nossos não o façam – até porque o SUS é uma conquista do memorável Movimento da Reforma Sanitária, cuja imensa maioria era constituída de médicos de vanguarda, protagonistas de uma de nossas maiores e mais emblemáticas conquistas sociais.
Aliás, em recente artigo publicado na grande mídia, uma pesquisadora de um centro de excelência em saúde pública da USP (Universidade de São Paulo) resgatava a origem do SUS e o significado do então Programa Saúde da Família (hoje ESF) na consolidação desse importante patrimônio do povo brasileiro. Isso nos leva ao reconhecimento do gesto do saudoso sociólogo e deputado federal Florestan Fernandes, quando enfrentava um câncer e recebeu o convite de influentes políticos, ex-alunos seus, para buscar tratamento nos Estados Unidos, e ele, coerente com sua trajetória de vida, agradeceu mas recusou, preferindo ser atendido pelo nosso muitas vezes enxovalhado SUS. Ocorre que ele como ninguém sabia o valor do sistema de saúde construído pela democracia brasileira.
Mais que um justo tributo ao bravo cidadão Florestan Fernandes, que, filho de uma viúva que sobreviveu e custeou os estudos do filho lavando e passando roupas com dignidade, este exemplo de quem deu a vida em nome das liberdades democráticas de que hoje gozamos sirva de alicerce para forjar o caráter – sim, o caráter acima de tudo – das novas gerações de profissionais brasileiros, para construir um país justo, solidário e libertário que a nação tanto clama e reclama desde sempre.
(*) Semy Ferraz é engenheiro civil e secretário de Infraestrutura, Transporte e Habitação de Campo Grande.