Pandemia vira gatilho dos transtornos mentais com saúde "em suspensão"
Profissionais relatam aumento da procura por atendimento em Campo Grande, mas pandemia alterou o funcionamento do SUS
É invisível a ameaça que coloca a vida em alerta ao menos desde o dia 11 de março quando a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou que a epidemia do Sars-Cov-2, o novo coronavírus, era, na verdade, uma pandemia. Entre quem nega que as milhares de mortes no Brasil sejam assunto sério e quem dedica todos os esforços ao combate da covid-19, quem pede socorro é a saúde mental. Em Campo Grande, conforme levantou a reportagem, o “efeito lockdown” dos poucos dias de medidas mais rígidas da Prefeitura provocou aumento na procura pela especialidade.
O problema é que em todo o Brasil a saúde mental é considerada uma das áreas mais deficientes do SUS (Sistema Único de Saúde), com estrutura que não atende toda a demanda e falta de unidades da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), a exemplo dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e residências terapêuticas.
O problema não fica só nisso em Campo Grande, conforme indicaram os vários inquéritos da 32ª Promotoria de Justiça: há demanda reprimida, poucos psiquiatras e falta de leitos. A situação tem piorado desde que a Santa Casa encerrou o serviço e fechou o ambulatório de psiquiatria. Por outro lado, sequer há legislação que determine a presença de psicólogos na maior parte das unidades do SUS (Sistema Único de Saúde).
Atendimento mudou – A pandemia alterou completamente o sistema de saúde, que voltou praticamente todos os esforços ao preparar o terreno para a chegada da pandemia, que já dá indícios de que será desastrosa no país onde quase 26 mil vidas já foram perdidas. O Brasil é o segundo país em casos e Mato Grosso do Sul, com poucos casos perto do resto do país, já começa a acelerar a curva e foi indicado com o 3ª estado onde a infecção mais cresce.
Em Campo Grande decreto municipal suspendeu todos os atendimentos ambulatoriais dos CAPS no início de março, mas permaneceram os atendimentos de urgência e emergência. As consultas também não foram desmarcadas, segundo a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) “para que a troca do receituário acontecesse normalmente nessa época de restrições devido à pandemia”, informou nota da pasta.
“Ou seja, o paciente vai normalmente até a unidade para retirar uma nova receita na data em que a consulta dele estava marcada, o médico com quem ele faz acompanhamento estará na unidade, como aconteceria se os atendimentos ambulatoriais estivessem acontecendo normalmente, portanto, caso o paciente não esteja se sentindo bem, por causa da medicação, por exemplo, o médico estará a sua disposição”, cita.
Outras atividades foram suspensas, a exemplo de atividades em grupo e as psicoterapias. A Sesau também afirma que não houve alteração nos quadros de funcionários ou no funcionamento geral das casas terapêuticas.
Este ano, entre janeiro e abril, foram 2.745 atendimentos a pacientes com quadro depressivo, 2.556 pessoas atendidas por transtornos de ansiedade e 48 atendimentos a pacientes psicóticos. A pasta também informou que 108 pessoas tentaram suicídio em março e 67 em abril.
O paradoxo da pandemia – Os efeitos do novo coronavírus no corpo não são apenas infecção generalizada e pneumonia. Para os profissionais da área, o outro lado da pandemia é o aumento de transtornos mentais e sofrimentos psíquicos. Da ansiedade até quadros graves de surtos psicóticos.
Presidente da câmara técnica de psiquiatria do CRM-MS (Conselho Regional de Medicina) médico psiquiatra e professor da UFMS, Kleber Francisco Meneghel Vargas enxerga um paradoxo na situação. “É algo paradoxal. É o momento em que mais se precisa da ajuda psicoterapêutica, do atendimento psiquiátrico, porque há alterações nos quadros de humor que tendem a aumentar os sintomas, como o medo de se contaminar e o isolamento. Então a gente vê com bastante preocupação acabar com atendimento porque acaba aumentando o fluxo, diminui de um lado, mas aumenta do outro”, comentou.
Entre os problemas já existentes antes da pandemia, Kleber cita a paralisação do ambulatório de psiquiatria do HU (Hospital Universitário) que está dependendo de uma liberação do Corpo de Bombeiros, depois que um incêndio atingiu o local.
“Existe uma série de problemas, número reduzidos de CAPS e ambulatórios especializados, especialistas que deveriam ser só psiquiatras. A gente vê muitos clínicos gerais, muitos residentes, não que seja um problema, mas o quadro ideal seria ter mais especialistas”, cita ele, que também relata “más condições e baixa remuneração” que não atraem candidatos às vagas.
“É uma situação em que você se coloca em risco, tem situações que você precisa internar e não tem vaga. Lembro que já chegou paciente no Nosso Lar que quando chegou já não tinha como internar, porque já tinha saído da crise”, explica.
O médico relata a necessidade de acompanhamento mais constante já que, diferente de outras especialidades da saúde, não há como fazer mutirão e “curar” os pacientes. “Te garanto que tem muita gente precisando de consulta, e as próprios pessoas que já conseguiram entrar nos ambulatório estão demorando para conseguir um retorno. O problema do paciente psiquiátrico é que é muito difícil dar alta, a grande parte são crônicos, vai ter que ver pelo resto da vida”, diz.
“É a área que menos recebe recurso, a que menos tem envolvimento da sociedade. Tem que ter fácil acesso”, critica.
Efeito quarentena – Psicólogo do CAPS Margarida e membro da comissão de saúde mental do CRP (Conselho Regional de Psicologia), Márcio Luiz de Souza Godoy contou ter percebido um aumento na procura no CAPS onde trabalha nos dias de medidas mais rígidas, desde o dia 19 de março, quando a Prefeitura decretou quarentena no comércio e em praticamente todas as atividades.
Márcio relata que a pandemia age como gatilho aos quadros já existentes ou mesmo para quem já tinha predisposição ao desenvolvimento de transtornos e não sabia. Aumentaram, contou, tanto as internações nos 10 leitos do CAPS onde trabalha quanto os acolhimentos espontâneos.
“O que notei é que quando aplicou medidas mais restritivas naquele momento teve um aumento de demanda. Chegamos a atender alguns casos em que a pandemia atua como gatilho de crise, quem já tem um transtorno mental é um exemplo a mais de estresse. Ela se isola, diminui o convício social, é bombardeada de informação, isso acaba reforçando um delírio, acaba exercendo um desencadeador de crise”, disse, ao citar os transtornos bipolares e esquizofrenias. “Aí tem uma outra questão, nos acolhimentos notei uma demanda de casos de ansiedade. A pessoa está exposta a uma incerteza”, explica.
No relato, seja como elemento adicional aos delírios de quem sofre quadros psicóticos, seja nos quadros de ansiedade e depressão, o medo da pandemia estava sempre presente.
“Estava na queixa do paciente, tinha uma paciente que apresentava delírio e dizia que o vírus estava em todo lugar, é um exemplo de como a pandemia serve como elemento de conteúdo. Teve um caso de depressão grave que o vírus também contribuiu”, conta ele.
Incerteza da vida incerta - Márcio conta que o que ocorre é uma intensificação de uma noção que, em menor ou maio grau, todos já temos: a vida é incerta e por isso, gera medo.
“A vida por si só é incerta, as relações são totalmente instáveis, tantos as afetivas quanto as trabalhistas e outras, e a incerteza provoca insegurança, a insegurança nos traz ansiedade. Mas, do nada, surge uma situação de pandemia em que não sabemos do dia de amanhã, não sabemos se teremos emprego, se vai passar logo, então acaba contribuindo como fator de vulnerabilidade”.
Entre os relatos que ele recebeu por ali, chegaram, por exemplo, anseios com o hiper convívio familiar e com o emprego perdido.
“Não foram situações absurdas, mas foram alguns casos naqueles primeiros momentos de mais restrição, as queixas foram no sentido de ‘o que será amanhã; eu estava trabalhando e perdi o emprego; estou convivendo mais próximo deles e não sei lidar com isso’”, conta.
Atender antes de piorar – O psicólogo defende novas políticas públicas e leis para a presença obrigatória de psicólogos nas unidades de saúde. Conforme explica, o CAPS é mais direcionado “a transtornos mais graves”, mas muitos sofrimentos e manifestações leves não tratados no início, acabam evoluindo para quadros piores.
“Nem tudo é medicação. É um movimento que também precisa vir da sociedade, de provocar essa demanda para o gestor público”, afirma.