Sexo a troco de 1 pedra de zuca: a “carne mais barata do mercado” é das usuárias
Dependência joga mulheres numa roda-viva, onde prostituição se encontra com miserabilidade
A carne mais barata do mercado é a carne negra
(Só-só cego não vê)
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos
O brado de Elza Soares, sobre a “carne mais barata do mercado”, ecoa pelos becos de Campo Grande, onde a dependência química joga principalmente as mulheres na roda-viva de violência, num encontro da prostituição com a miserabilidade. Um programa pode custar uma pedra pequena de zuca, o crack caipira, que vale R$ 10. E não se engane sobre a cor da pele: a maioria a perambular em busca da droga é negra.
Perto da Avenida Ernesto Geisel, a margem degradada do Rio Anhanduí antecipa o cenário de desamparo na Vila Nhanhá. Pelas esquinas dos becos, pequenos grupos de dependentes químicos consomem a droga. Crack caipira, a zuca é o produto da mistura de folha de coca, gasolina e cal. Em sete segundos, a fumaça “viaja” pelo organismo, resultando em meia hora de euforia. Depois, chega a paranoia. A zuca atua no sistema de recompensa cerebral. O corpo vai pedir mais e mais.
A dependência química se mostra, literalmente, na cara. A perda muscular faz o rosto ganhar aspecto encovado. Como o da face da mulher que perambulava pelas ruas da Vila Nhanhá na manhã de segunda-feira (dia 11).
Negra, vestido com tecido roto, face encovada e sem dentes, a mulher marchava em ritmo acelerado para lá e para cá. Na breve parada, para se recusar a falar com a reportagem, é cumprimentada por um homem que, antes de entrar no carro, grita: “oi, nega véia”. Ela responde e volta à caminhada incessante.
No entorno da antiga rodoviária, no Centro de Campo Grande, os rostos com as marcas da dependência química se repetem. Em janeiro de 2021, homem foi preso por tráfico de drogas na Rua Joaquim Nabuco. Dentro do carro, estava uma mulher nua, a dependente química fazia programa a troco de uma pedra de pasta-base, de valor equivalente a R$ 50.
“Vem aqui, nós vamos fumar” – Se quem está sob o domínio do vício, nem consegue opinar sobre o que vivencia, quem está em recuperação dá voz ao flagelo da dependência química.
Rosana Rosa de Souza, 50 anos, “flertou” com a rua desde a adolescência, quando tinha 12 anos. Primeiro, descobriu o fumo, quando a madrasta pedia para ela ir buscar o produto ou acender um cigarro. Depois, se aproximou das drogas ilícitas e, nas idas e vindas, acabou morando nas calçadas da cidade.
“Experimentei, gostei e assim foi. Cada vez mais fui me aprofundando. Não só a pasta-base, mas no álcool”, diz Rosana. Na rua, era ladeada por homens e mulheres que, na sua análise, se perderam na própria história.
“Vou te dizer uma coisa, a rua não é legal não. Não é nada bom. Muitas vezes estava dormindo na calçada, vinha a pessoa e jogava água na gente, xingava, dava chute. A gente era humilhado mesmo”.
Nesse mesmo meio-fio, se sentava com uma pergunta: “o que estou fazendo da minha vida?”. Já desacreditada pela família, ela conta que não recebia mais convites para voltar para a casa.
O dinheiro para a subsistência vinha dos bicos de guardadora de carros, da ajuda na venda da droga e da prostituição. “Era o meio que eu tinha para manter o meu vício”. O alimento era obtido com doações ou revirando o lixo dos grandes mercados. Mas parte das marmitas também era trocada por droga. “Eu tomava banho dentro do cemitério, pedia para o guarda. Ele sabia que a gente não ia mexer em nada, fazer vândalo”.
Se há pessoas doentes e miseráveis, também há quem veja nas usuárias de drogas uma oportunidade.
“Às vezes nem é o dinheiro, mas a droga. Param o carro e falam eu tô com uma boa aqui, vem aqui, nós vamos fumar, beber, se divertir. É um risco que sempre corri, mas na situação que estava tudo que vinha era lucro”.
O pagamento em dinheiro era de R$ 20, R$ 30 ou R$ 10. “Até com R$ 10 a gente já fazia a festa. Dava para comprar uma paradinha”. Questionada sobre o que pensa sobre essa clientela, Rosana é sucinta. “Eles não estão nem aí não”.
Em recuperação, ela conversa com a reportagem na igreja Ministério Pentecostal Tabernáculo da Glória. A instituição religiosa mantêm projetos de assistência para atender homens e mulheres dependentes químicos.
“Eu estava sofrendo muito. E tive uma oportunidade, Deus abriu as portas para mim e hoje você está me vendo aqui”. Rosana mora na chácara mantida pela igreja. “Muitas vezes eu quis ir embora, uma vez eu fugi. Mas o apoio que tenho aqui, nunca tive lá fora”.
Rosana, que não sabia nem escrever o nome, está estudando. “Foi muito bom aprender a escrever”.
Filhos das drogas - A tormenta das drogas não poupa nem quem acaba de nascer. Os recém-nascidos trazem na pele ressecada, no choro inconsolável, na agitação noturna e em quadros graves de saúde as marcas da dependência química, que nestes casos, passam de mãe para filho. A chamada síndrome de abstinência neonatal.
Parte dessas crianças é fruto de sexo esporádico nas ruas ou da acolhida de “benfeitores”: homens mais velhos que dão guarida para essas usuárias, que perdem o teto quando engravidam.