Curioso muro na Rua Paraíba é a história de vida e militância da dona
Reportagem começou com bilhete deixado na caixinha de Correio e contou com ajudinha de comadre que alertou dona para ver recado
No cimento do muro da casa 1494, na Rua Paraíba, o Pantanal faz morada. Capivaras, peixes, araras e um casal indígena. Símbolos de um Mato Grosso do Sul que foi motivo de mudança de Maria Helena para cá, no final da década de 1970.
Há dias passava pela frente da casa imaginando que uma artista morasse ali, e o muro fosse reflexo do trabalho. Não foi um engano por completo, porque Maria Helena Brancher, além de jornalista, ambientalista e filósofa, também faz Artes Visuais na UFMS.
Toco o interfone, mas ninguém responde. Resolvo então recorrer a uma velha prática que já rendeu boas histórias, de deixar um bilhete, escrito a mão, me apresentando e com meu número de telefone, mas não ficamos só nisso. Posto nas redes sociais o muro da casa, vai que alguém conhece e pode avisá-la que tem um recado à sua espera? Não é que deu certo? Em minutos descubro que Maria Helena, a dona da casa, chama de "comadre" sua amiga de longa data, a produtora cultural Dalila Saldanha, da família Espíndola, que faz a ponte lhe avisando do bilhete.
No dia e hora marcados, Maria Helena e eu falamos, quase que ao mesmo tempo, o quanto gostaríamos de nos abraçar. Hábito suspenso por conta da pandemia. "A gente está vivendo experiências diferentes, é uma transformação para o ser humano. Se a gente não cresce pelo amor, vai pela dor", diz.
"Eu moro aqui desde que você nem tinha nascido ainda..." E assim começa a história dela e do muro, que na verdade se resumem a paixão pela natureza. "Eu vim para Campo Grande em 1978, bem jovem, recém-formada, e em 1993, não conseguia casa para alugar, então tinha essa para vender e compramos", conta Maria Helena, hoje com 67 anos.
O muro é de 2012, obra do artista plástico Adilson Schieffer. "Talvez seja de um pouco antes", tenta puxar na memória. Mas primeiro vem toda a história, por que o muro mesmo, foi o jeito materializado de encerrar os anos de luta.
Maria Helena chegou no final da década de 1970 ao então recém-instaurado estado de Mato Grosso do Sul, trazida pela militância com o meio ambiente e a causa indígena. "Escolhi vir para Mato Grosso do Sul para ficar mais perto das aldeias indígenas e aqui criamos o Gain (Grupo de Apoio à Causa Indígena) que depois que os índios assumiram sua autodeterminação, então a gente saiu e acabou com a ONG, mas era todo mundo voluntariado, não se trabalhava com recursos", explica.
Em 1978, mais precisamente, foi o ano que Maria Helena deixou o Sul do País, com um projeto de revista agropecuária para ser desenvolvido no Estado. "Depois de uma pesquisa de mercado, vimos que era um estado essencialmente agropecuário e que essas informações, conforme técnicos, Embrapa, todo mundo que a gente entrevistou, seria importante".
A revista "Campo" durou três anos, e, apesar de ser rodada no Rio Grande do Sul, não se viabilizou financeiramente. Junto da revista, sempre esteve a militância de Maria Helena, que depois se voltou para as questões ambientais.
"Nos anos 90, tinha um grupo de empresários que estavam fazendo uma usina de álcool carburante na Serra da Bodoquena para usar mão de obra barata dos índios e usar o Pantanal para descarregar o vinhoto, naquela época, criamos o comitê de defesa do Pantantal", lembra.
Através de reportagens nacionais, a causa ganhou o País e o comitê recebeu abaixo-assinado de gente até de fora do País. "Conseguimos acabar com aquele projeto, teve Grupo Acaba, Geraldo Espíndola, todo esse povo fazia parte da luta", ressalta.
A luta dela também se mistura ao do jornalista e ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros, morto em 2005, depois de atear fogo no próprio corpo contra a instalação de usinas no Pantanal. À época, Francelmo, como era conhecido, estava na presidência da ONG criada por ele, e Maria Helena, na vice da Fuconams (Fundação para Conservação da Natureza de Mato Grosso do Sul). E sobre a amizade e a luta deles, daria outra matéria.
Voltando ao muro, antes da ideia ir para o cimento, Maria Helena e Adilson já eram amigos de décadas, e foi nos anos 2000 que ela pediu para ele apadrinhá-la dentro da União do Vegetal, em Campo Grande. "Ele e a mulher são muito queridos e eram da União do Vegetal e eu pedi para conhecer, queria tomar ayahuasca e conhecer os mistérios, e quando tivesse uma sessão para iniciantes, para eles me avisarem", recorda.
Foi lá que Maria Helena encontrou um dos muros de Adilson, que reverenciavam a natureza. "Frequentei muitos anos lá e naquela época ele fez um murais lindos na sede, aí pedi para ele: 'Adilson, vamos fazer um muro?' Mas eu achava que sera uma coisinha pequena, quando ele pegou o muro inteiro, foi maravilhoso", se orgulha.
O muro tinha um recorte, um quadradinho, que foi onde Maria Helena pensou que seria feito o trabalho. "Ele contratou os pedreiros que fizeram a massa que ele orientou e em seguida, antes de secar, ele já veio fazendo e pronto. Já tinha na cabeça o que desenhar", explica a dona.
Adilson Schieffer, pauta de uma próxima matéria, explica que a técnica que ele trabalha era muito utilizada na Mesopotâmia e antigo Egito. "Você joga o cimento e ele não pode estar nem muito duro nem muito mole, precisa estar no estado de couro e quando chega nesse estágio, vou moldando".
Assim que um desenho é acordado com o dono do ambiente, um pedreiro é chamado, chapa o cimento que é moldado por Adilson, que além da técnica, precisa se ater muito a luz. "É uma técnica muito delicada, então para dar a conotação do desenho, tem que ter incidência de luz corretamente, para parecer o que o desenho é aquele. Então, além de bem esculpido, a luz precisa incidir no muro", descreve.
Foram dois dias para o trabalho terminar e a casa de Maria Helena se tornar ponto de referência no bairro. "Um dia desses peguei um Uber e quando ia explicar a casa, o motorista falou: 'eu já sei, é onde está o Pantanal'", reproduz Maria Helena.
As crianças do região, então, nem se fala. "Teve uma época que tinham muitos bebês por aqui e eu via as babás que me perguntavam: 'a senhora não fica brava, mas é que eu chego no meu trabalho e as crianças já começam a falar bicho, bicho, bicho'", recorda.
A ideia foi de deixar no muro uma arte, mas uma arte engajada. "Eu queria finalizar essa minha militância com uma marca, para eternizar, pelo menos no muro, uma defesa pública da questão do Pantanal", pontua a ambientalista.
"Para mim, significa o amor profundo pela natureza, pelo meio ambiente, pela permanência dessa força viva da natureza. As mesmas leis que regem a natureza, regem o ser humano, e a gente não se dá conta, não percebe, não respeita isso. Assim como tem a lei do retorno, tem as leis da natureza que tanto para o ser humano. O desmatamento da Amazônia, aquele fogo, por exemplo, não sacrifica só a terra e os animais, mas o ser humano também".
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