Quando se é preto e trans, querem impor a violência a todo custo
Ao invés de apenas lidar com a violência, entrevistados dizem que estratégia é se munir de consciência e afeto
“Sempre querem ditar um vínculo entre nós e a violência. É claro que ela existe, mas dentro da nossa comunidade, temos criado estratégias para nos mantermos vivas e bem, para mostrarmos que nossa vida não se baseia só nisso”. Ao lado de Kiara Kido e Dan Benjamin de Oliveira da Silva, Emy Mateus (também conhecida como Afro Queer) tenta resumir sobre como, em suas palavras, quando se é preta e trans, a impressão é de um mundo tentando impor a violência como regra. Enquanto isso, a meta de cada um e de cada uma é mudar esse fluxo.
No primeiro feriado nacional da Consciência Negra, uma das nossas pautas é sobre ser “o outro” em um recorte duplo, por assim dizer, no Mato Grosso do Sul. Sem negar as violências escrachadas, o ressaltado nas entrevistas é a necessidade e o foco em algo muito básico que se é negado de forma generalizada: o afeto.
E, para começar a conversa, vamos com Emy descrevendo o início da história: “entre ser preto e ser trans, a gente não escolhe, as coisas vêm juntas, não são separadas. As pessoas são muito maldosas porque questionam se a gente sofre mais por ser preta ou por ser trans. Como vou mensurar uma coisa dessas? Eu sei a potência de ser tudo isso, mas de sofrer mais ou menos não dá”.
A multiartista diz isso por ter perdido as contas de quantas vezes ouviu alguém tentar hierarquizar os sofrimentos e as dores. Para além dessa tentativa, há o reforço de estereótipos, como introduz Kiara.
Integrante do grupo “De Trans pra Frente”, Kido aponta que a regra costuma ser encaixar pessoas trans e travestis no campo da violência e do crime. Sem precisar pensar muito, se sabe que negros também são apontados nesse caminho. Então, quando se é os dois, imagine o estigma.
Ações violentas são esperadas da gente, parece algo que está dado. Mas nós precisamos entender o que vale fazer com cada situação (de preconceito) e, pensando nisso, nós da coletiva conversamos muito sobre afeto, sobre como podemos recorrer uma à outra, que podemos achar caminhos para várias situações”, argumenta a artista.
Aqui é que entram as estratégias para conseguir, antes de qualquer coisa, viver. Desde os olhares no cotidiano até os crimes cometidos em comentários de redes sociais, exemplos não faltam sobre com o que é necessário lidar.
Tanto Emy quanto Kiara quanto Dan explicam que, em algum momento, a raiva vem, mas que o consenso é geral em tentar dar a volta. Principalmente quando se entende a necessidade de ter uma rede de apoio para conquistar uma vida composta por momentos tão básicos quanto tomar um café da manhã em família.
Eu acredito em caminhos a serem construídos porque o que, em geral, é construído sobre corpos trans e pretos vai muito para o caminho da violência. Nós tentamos sair desse lugar porque não é só isso. Então quando algo acontece, nós precisamos pensar se vamos responder e transferir o constrangimento ou se vamos para a nossa rede de apoio ver o que podemos fazer, acionar os meios legais. Isso porque todos esses processos vão ter dimensões na nossa vida, seja no psíquico, no social ou no espiritual”, descreve Emy.
Na visão de Kiara, o primeiro passo é se centralizar porque quando há uma enxurrada, por exemplo, de comentários negativos nas redes sociais (independente do assunto), há uma dificuldade em manter o foco.
É nesse caminho que encontrar o acolhimento faz toda a diferença. “Nosso impulso vai muito das pessoas com quem nos unimos, principalmente com pessoas pretas e trans. Saber que a gente não tá sozinha, que não somos o que estamos passando, que não somos as primeiras e nem seremos as últimas a passar por isso”, relata Kiara.
Completando a linha de pensamento, ela argumenta que seu posicionamento tem sido de impulsionar a si mesma e quem está ao seu redor. “É uma ideia de falar ‘vem comigo que eu estou com você, você não tá sozinho’”.
Exemplo de como essa estratégia de sair das violências e encontrar espaços para o amor de forma coletiva muda vidas é descrito por Dan. Apesar de ter crescido em Mato Grosso do Sul, ele havia se mudado para o Rio de Janeiro e lá fez sua transição de gênero.
Quando decidiu retornar, parte da dor envolvia imaginar como seria estar na cidade em que foi abandonado pela família. “Aqui tenho minhas feridas, mas quando fui abraçado porque meu amigo me apresentou elas e os outros meninos, entendi que existe esse afeto. É por isso que estou em todos os movimentos, porque ali me sinto acolhido, seguro, amado e sei que existe afeto de verdade”.
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