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Meio Ambiente

Com redução do consumo e "falta" do lixão, catadores são "espelho" da crise

Crise econômica provocou a diminuição na geração de resíduos

Izabela Sanchez | 30/09/2017 10:40
(João Paulo Gonçalves)
(João Paulo Gonçalves)

A crise econômica mostra aspectos contraditórios da sociedade. Enquanto alguns setores desaceleram, reduzindo a produção e culminando em desemprego, outros disparam. É o caso, por exemplo, da venda das luxuosas Ferraris, que dobrou em 2016. Na outra ponta, a mais vulnerável da sociedade, a crise chega como um furacão: leva embora uma série de recursos e faz com que camadas inteiras tenham que construir tudo novamente. É assim a vida de quem recolhe o que a sociedade não quer ver: os catadores de recicláveis.

A geração de resíduos no Brasil diminuiu 2,04% em 2016 em relação a 2015, segundo a Abrelpe (Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Foram gerados 78,3 milhões de toneladas de resíduos sólidos no ano passado. Presidente da Associação, Carlos Silva Filho não atribuiu a redução do lixo à conscientização ambiental da população, conforme noticiou a Agência Brasil, mas sim à crise.

Em Campo Grande não foi diferente. A Solurb - concessionária responsável pela coleta de lixo na Capital - informou que a quantidade de resíduos sólidos domiciliares e comerciais coletadas no ano de 2016 foi 1,25% menor em relação ao ano de 2015. No começo deste ano, comenta a empresa, a quantidade voltou a aumentar: são 850 toneladas de resíduos coletadas diariamente. Entre janeiro e agosto, o aumento em relação ao mesmo período no último ano, foi de 4%. 

Levando carrinhos e percorrendo quilômetros à pé, todos os dias, eles ainda continuam a sentir o impacto da crise. São os catadores autônomos. Não cooperados junto à UTR (Unidade de Triagem de Resíduos), formam um exército invisível, esquecido, mas responsável por limpar e tornar sustentável a cidade. O impacto que sentem, ainda assim, vai além da crise que diminui o consumo. São catadores 'órfãos' do antigo lixão.

A gente se adapta

Márcio Saturnino, 54, ilustra a surpresa de receber a reportagem na casa onde vive com sorriso no rosto. A vida ele passou praticamente em meio àquilo que outras pessoas chamam de lixo. São 25 anos coletando materiais. Márcio vive na região que mais concentra os órfãos do antigo lixão. A estrutura foi problema histórico em Campo Grande, que acabou por cumprir o que prevê a Política Nacional de Resíduos Sólidos, lei federal nº 12.305/10 e encerrando o espaço em 2016.

Ali, a vulnerabilidade de renda - a maioria dos moradores do bairro sobrevive por meio da coleta no lixão - une-se à de moradia. Márcio, por exemplo, vive em local 'irregular', onde a Prefeitura, durante a gestão de Alcides Bernal (PP), começou a construir moradias para abrigar a comunidade da favela Cidade de Deus, projeto que não foi concluído e que deixou uma série de irregularidades para trás.

"Depois que fechou o lixão, o negócio aqui ficou parado, muita gente parou, muita gente desempregado, depois uma parte das pessoas entrou pra Solurb, outra parte pegaram carrinho e estão trabalhando na rua, como catador [sic]. E é isso, estamos catando na rua, estamos trabalhando assim, mas não é igual era no lixão, porque lá tinha mais material, tinha de tudo. Vinha gente de outros bairros, gente de fora", conta ele.

Márcio não 'bate ponto'. Não tem hora para 'entrar' no trabalho, e nem para 'sair'. O excesso e a falta de fronteiras onde começa e onde termina o horário de trabalho e o lazer são ilustrados pelo espaço da casa onde vive com a esposa. Ali, as plantas do quintal e as cadeiras para o descanso dividem espaço com pilhas e pilhas de 'pets', os plásticos que ele recolhe, e depois vende para serem beneficiados.

O catador não sabe apontar o que é mais responsável pela diminuição de resíduos, o fim do lixão, ou a crise, mas relata ter percebido que os materiais diminuíram nas ruas. Outro aspecto da crise, emenda ele, é a diminuição do material que os catadores chama de "fino".

"Porém hoje, desse jeito que está, a gente está catando na Rua e não está assim 'grande material', tem pouco material na rua. Pode ser mesmo por causa da crise, então deu uma diminuída, porque diminui a latinha, diminui os nossos materiais recicláveis. Antes tinha bastante material 'fino' né, o cobre, o metal, latinha, porém hoje tá meio sumido esse tipo de material. Então o que mais tem hoje é papelão. Agora, tem outros materiais que são os plásticos, os pets. Os pets, por exemplo, diminuiu muito, não tem mais igual tinha antes", relata.

A oferta diminui e também a renda e logo ambos culminam em algum 'corte doméstico'. "Mas a gente se adapta", finaliza ele. "Nas ruas, às vezes tem semana que é melhor em um canto, as vezes melhor em outro. Lá no centro sempre é melhor de papelão. Bairros pequenos sempre é menos materiais, acho que até pelas pessoas serem mais 'fracas' [de poder aquisitivo], vem menos materiais. Mas para ir com um carrinho daqui até lá [centro] é muito longe, e cansa muito".

Márcio Saturnino, na casa onde vive, com os sacos de pets recicláveis (João Paulo Gonçalves)
Márcio Saturnino, na casa onde vive, com os sacos de pets recicláveis (João Paulo Gonçalves)

Essa é minha profissão

Foi pensando no cansaço que outro Márcio, e também catador, juntou as economias e comprou uma motocicleta. Márcio de Lima Gomes, 39, se intitula representante dos catadores que perderam o trabalho com o fim do lixão. Ele chega a percorrer 60 km diários atrás de recicláveis.

Até tentou um 'emprego' depois que o lixão fechou, mas para ele, os 20 anos de coleta são uma identidade praticamente colada à pele do corpo. "São mais de 2 mil catadores, em média 3 mil catadores. Quando fechou fui trabalhar na Solurb, mas depois eu saí, não consegui me adaptar no emprego, porque eu sempre mexi com isso aqui. Aqui é minha fonte de renda, daqui eu não saio entendeu?".

"Agora não tem, se você não tiver uma condução você não encontra, mas vai levando a vida. Desde quando eu estou catando na rua está a mesma coisa. É, um pouco [diminuição de materiais], percebo isso sim. Mas a crise é só pra nóis né [sic], que pra eles lá não tem crise não", relata. Bem mais crítico que o 'xará', Guimarães afirma que a transição do lixão para o UTR, onde catadores trabalham cooperados, deixou muitas pontas desamarradas para trás.

"A Prefeitura tinha que dar um subsídio, uma ajuda de custo, que está prevista na lei, lei nacional dos resíduos sólidos. É muito importante, além de gerar renda pra muitas pessoas, pra sustentar a família, e também pelo meio ambiente. Eu gosto disso aqui, é minha profissão e eu não tenho intenção de largar. Já arrumei emprego bom, não quero nem saber, vou ganhar 3 mil, 2 e meio, não quero saber, é aqui minha vida", relata.

Dom Antônio Barbosa é lar para muitos catadores (João Paulo Gonçalves)
Dom Antônio Barbosa é lar para muitos catadores (João Paulo Gonçalves)
Catador 'motorizado' leva seu valioso produto para a entrega (João Paulo Gonçalves)
Catador 'motorizado' leva seu valioso produto para a entrega (João Paulo Gonçalves)

Confira a reportagem em vídeo:

As duas pontas da crise

A crise, ainda assim, é uma espécie de caleidoscópio e apresenta diversas faces. É o que relata o consultor em reciclagem e empresário Ricardo Ferreiro. Pioneiro em Mato Grosso do Sul, Ricardo foi o primeiro a fundar uma empresa de reciclagem, a Metap, hoje nas mãos de outra pessoa. Ele acompanha o cenário há 27 anos.

O consultor defende que a transição do lixão para a UTR foi realizada de maneira responsável e revela que enquanto a crise diminui a oferta de materiais nas ruas, também 'empurra' empresas para o consumo sustentável: quem antes só queria material 'novo', agora adquire recicláveis.

"Diminui um pouco a geração do produto, porque há menos consumo, então tem um pouco menos de oferta pra quem trabalha no segmento. Por outro lado, quem usa matéria prima pra fazer embalagem, começa a olhar com outros olhos o material reciclado. Então, na outra ponta, você tem mais consumo disso aí. Então, por exemplo, se você tem uma indústria de filme plástico, vou te dar um exemplo mais crítico aqui. Tem gente que só trabalha com resina da petroquímica, ela não quer nem saber de resina reciclada. Quando começa um ambiente de crise, começa a apertar custos pra todo mundo, a pessoa já não torce o nariz pro material reciclado", relata.

Para ele, o que precisa mudar é a forma como as pessoas encaram os resíduos. Enquanto pessoas e empresas não forem responsáveis por aquilo que geram, conta ele, o cenário não irá melhorar.

"É uma vergonha a quantidade de material que é separado dentro das casas, então vai tudo pro lixo comum. Isso é cultural, então demora pra quebrar algumas coisas. Tem lugar que a legislação é um pouco mais apertada, mas se você olhar na lei, o responsável pelo resíduo é o gerador do resíduo. O poder público tem que melhorar muito, sim, a questão da coleta seletiva, cobrar mais a população, disponibilizar coleta em outros horários, em períodos que hoje não tem", critica ele.

Ricardo conclui ao apontar uma questão que ele vê quase como utopia, e afirma que irá repetir "até o fim da vida": a coleta seletiva deveria estar nas mãos de cooperativas de catadores, e não de empresas.

"Um erro, que eu vejo assim, que é grave... eu acho que essa coleta seletiva deveria ser feita pelas próprias cooperativas, e não por uma empresa privada. Porque se o objetivo é que esse material reciclável, que é separado nas casas, chegue nas cooperativas, porque não pegar esse trabalho de recolhimento desse material, capacitar esses cooperados, e eles mesmos fazerem o recolhimento?".

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