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O mal é uma coisinha ordinária

Marília Fiorillo / Jornal da USP (*) | 01/03/2023 09:22

Como disse Hannah Arendt – em carta ao amigo e filósofo Gershom Scholem –, o mal não possui nem profundidade, nem qualquer dimensão demoníaca. Pode crescer demais e destruir o mundo inteiro justamente por se espalhar como um fungo por sua superfície, graças a nosso descaso e indiferença.

A comparação do mal com um fungo, tão irrisório, tão mixuruca, tão despercebido, é um modo de dizer que os maiores perigos para a humanidade não possuem aquela dimensão sinfônica e grandiloquente – a dimensão da frase “O horror, o horror”, dita pelo coronel Kurtz, a epítome do mal no livro O coração das trevas, de Joseph Conrad, que inspirou o filme Apocalypse now.

O mal, como fungos, vírus e mofo, é uma coisinha ordinária. Mas se espalha insidiosamente, e ninguém costuma notá-lo no começo, quando parece uma miudeza fácil de descartar, trivial, mesmo pueril. Não há, nem nunca houve, qualquer grandiosidade satânica nas atrocidades promovidas por Assad, Putin, o Talibã, o Daesh ou o grupo mercenário Wagner pró-russo na Ucrânia, mas apenas a marca vulgar do criminoso, a delinquência alçada, pela batuta da história, à missão maiúscula que (com Hitler e Stalin, por exemplo) pode empolgar multidões.

Ao analisar o julgamento de Eichmann em Jerusalém, para uma reportagem da New Yorker que lhe rendeu o rancor e ataques da comunidade judaica (por não ter ocultado o colaboracionismo judeu nos Judenräte, os conselhos judaicos), Arendt concluiu que Eichmann, o burocrata organizador dos trens da morte, o contabilista da Solução Final, não passava de um sujeitinho banal, vulgar, pouco inteligente e muito cioso de sua função burocrática.

Ao ser indagado sobre seus crimes, ele alegou que apenas “cumpria o dever”, à moda do imperativo categórico de Immanuel Kant. Inicialmente, Arendt era contra a pena de morte, mas após presenciar as sessões concluiu que a pena capital era acertada, dada a amoralidade de Eichmann, que o excluía, por princípio, da própria comunidade humana. Não era um psicopata, era menos e pior: uma abominação desumana, portanto privada dos direitos e prerrogativas que cabiam aos homens.

A maldade, não sendo nem metafísica nem sobrenatural, depende, para sua vitória, tão somente da desatenção e negligência dos homens. Sim, Arendt alertou para seu caráter aparentemente comezinho e para a tentação, em situações-limite, de aderir. Todos podemos nos tornar cúmplices e algozes, mas o que menos se comenta na obra da filósofa judia e alemã é que também podemos dizer NÃO.

Reduzido à sua natureza reles e rastaquera, embora obscena, o mal nos mete menos medo, e deixa de nos subjugar ou nos tornar irremediavelmente impotentes. Arendt sugere que possuímos a capacidade de compreender o mundo e os meios de agir nele.

Muitos dos conceitos elaborados pela filósofa há décadas, em As origens do totalitarismo, emergem no século XXI como chaves para se decifrar o caos do mundo contemporâneo: por exemplo, o conceito de “inimigo objetivo”, antes aplicado aos judeus, agora aos islâmicos e daqui a pouco a outro alvo; ou o uso generalizado da mentira como propaganda, que estamos cansados de ver; ou a atomização do indivíduo, melhor, sua dissolução em uma massa amorfa.

A vita activa, a participação e refundação do espaço público, a política como diálogo, o mais alto patamar da condição humana, tais valores, se fossem hoje submetidos a uma enquete digital popular, provavelmente estariam na rabeira, no último lugar.

“A história é um pesadelo do qual quero despertar”, escreveu certa vez James Joyce. Vamos chamar um poeta para contradizê-lo. Não, não é Bertolt Brecht, sempre convocado quando se quer falar de poesia e política – e ironia.

Vamos chamar o norte-americano William Carlos Williams, que também era médico e devia conhecer de perto o quanto a vida reserva truques e boas surpresas. O poema é assim:

Ao pular sobre o tampo do armário de conservas
o gato pôs cuidadosamente
primeiro a pata direita da frente
depois a de trás…
dentro do vaso de flores vazio.

O vaso vazio está à nossa espera. Em sua singeleza paradoxal (como os provérbios budistas) esse poema pode ser dedicado aos “Capacetes Brancos”, aqueles cidadãos que se engajaram na defesa civil na Síria contra as armas químicas de Assad e Putin e resgatando pessoas dos escombros, ou aos improvisados combatentes ucranianos, ou às mulheres afegãs, a todos, enfim, que mantêm sua humanidade (e enxergam que dentro dos trens da morte há gente milimetricamente igual a eles) e resistem.

O mal é banal, sedutor, fácil, e captura mesmo os relutantes. Mas não é inelutável.

A ensaísta Susan Sontag certa vez escreveu: “No centro de nossa vida moral e de nossa imaginação moral estão os grandes modelos de resistência: as grandes histórias daqueles que disseram não”.

Essa epígrafe foi escolhida pelo jornalista Eyal Press, colaborador de New York Review of Books, The Nation e New Yorker, para abrir seu livro Beautiful souls (vamos improvisar a tradução: “Gente bacana”), de 2012, em que pesquisou e descreveu quatro histórias de pessoas que, quebrando regras, foram capazes de levantar a voz e dizer não, recusando-se a pactuar com iniquidades. Uma delas é a do policial suíço que, em 1938, na fronteira da Áustria, desobedeceu a orientação de barrar a entrada de refugiados judeus, e salvou dezenas deles.

Outra é a de uma bem-paga corretora do mercado financeiro que perdeu o emprego ao rejeitar a negociação de um produto altamente tóxico. A terceira é a de um militar israelense de um grupo de elite que se negou a servir nos territórios ocupados durante a segunda Intifada.

Mas talvez a mais impressionante dessas histórias seja aquela ocorrida na cidade de Vukovar, durante a Guerra dos Balcãs, em que um sérvio bonachão e simples, usando um engenhoso expediente, salvou vidas. Designado pelas milícias sérvias para separar, em filas diferentes, quem era croata ou muçulmano (portanto fadado à execução) de quem era puro sangue sérvio, ele adulterou o sobrenome de seus vizinhos, conhecidos e desconhecidos, e com isso salvou da morte muita gente.

Ao ser perguntado pelo historiador por que havia feito isso, respondeu: “Mas eu não podia ter feito diferente!”. Não é instruído nem politizado, e gosta mesmo de cerveja e partidas de futebol. Não tem uma partícula que seja do chamado “heroísmo”. Apenas agiu, diria Arendt, como um homem que reconhecia a humanidade do outro. Os vizinhos salvos lhe agradeceram? Nunca. Ainda à época do livro, lhe eram hostis.

Mas isso pouco importa.

O que pessoas tão diferentes têm em comum? Nenhuma delas temia desagradar seus iguais, nenhuma sucumbiu à pressão do grupo. Sua coragem, sugere o autor, provém do simples fato de possuírem espíritos independentes, capazes de aferir o limite em que o suposto “dever” (ou norma, ou tendência) fere a lei maior de reconhecer a humanidade do outro. Suas ações, impopulares e mesmo perigosas, provêm de um impulso da imaginação, essa arte de colocar-se no lugar daquele que é diferente.

Neles, predominou a empatia, isto é, a capacidade de se ver espelhado em alguém que não é da família, nem próximo, amigo, conterrâneo, torcedor do mesmo partido ou time. Adam Smith, na Teoria dos sentimentos morais, chamou isso de “sentimento de companheirismo”, uma habilidade em derivar a compaixão da aptidão de imaginar-se na pele de alguém dessemelhante. Isso para o pior e o melhor: a empatia não é exclusivamente piedade, mas também a capacidade de se alegrar com a felicidade alheia.

Os quatro personagens do livro de Press são o oposto simétrico do criminoso nazista Eichmann, aquele homúnculo convencional, metódico, obediente, e que inspirou em Hannah Arendt a noção de banalidade do mal.

Nos casos descritos no livro Beautiful souls (Kindle Edition, 2013), o bem tem suas manhas, e consegue vingar contra a tendência dominante. Um ariano que salva judeus, um israelense que se nega a atacar palestinos desarmados, um sérvio que protege croatas. O senso de pertencimento desses discretos heróis é aquele sentimento alargado de companheirismo (que citamos em artigo anterior, sobre justiça como sentimento de lealdade), que se estende para abraçar todos e qualquer um.

Será que não deveríamos substituir a tão propalada noção de tolerância – pois tolerar é sempre uma condescendência, uma concessão, um favor que se faz aos estranhos – pela ideia mais generosa de empatia, ou sentimento de lealdade ampliada?

(*) Marília Fiorillo é professora de Filosofia Política e Retórica da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo.

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