Mãe luta para ser assistente social e virar página depois de estrupro dos filhos
Na semana passada, depois de força-tarefa que prendeu criminosos sexuais, mãe conta que reviveu tudo de novo
No mês reservado para ações de conscientização ao enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, a ferida de uma mãe doí como nunca. Não que algum dia desde outubro de 2019 ela tenha deixado de doer, mas o maio laranja, como prega a campanha, traz à tona o crime cometido contra os filhos dentro da própria família.
Aos 34 anos, a estudante de Serviço Social que não pode ser identificada para preservação das crianças, já deu entrevistas sobre o caso, mas sente hoje a necessidade de falar de novo e ser ouvida, na tentativa de que o tempo se apresse e o inquérito se encerre o mais breve possível. As próximas audiências foram marcadas para maio e setembro do ano que vem, e ela não vê a hora de virar essa página ao lado dos filhos.
Moradora da comunidade do Mário Covas há cinco anos, entre doações entregues às mães da região que a estudante revive na varanda de casa o dia em que descobriu o crime cometido pelo "avôdrasto" contra os filhos, à época com 4 e 10 anos. O mais velho, inclusive é autista e o caçula só conseguiu denunciar depois de começar a falar, resultado de um longo tratamento com fonoaudióloga.
A vontade de fazer Serviço Social nasceu depois que a mãe teve o diagnóstico do filho autista. Aos 7 anos, chegou o primeiro laudo da neuropsicóloga, que afirmava que o comportamento "estranho", nas palavras da própria mãe, era característica do autismo.
"Quando eu dizia que era mãe de autista, todo mundo já me relacionava como psicóloga, pedagoga, mas não. Meu sonho é ser assistente social", explica. Na verdade, é na luta pelos direitos das outras pessoas que a mãe se encontra.
O curso teve uma pausa, porque ao descobrir os abusos, a mãe se perdeu na dor.
Os abusos - A estudante respira puxando fôlego para dentro do pulmão, uma forma de se fortalecer ao contar tudo o que aconteceu desde 2019. O ex-marido é usuário de drogas e vivia em clínicas de reabilitação ou preso. Para ter ajuda no sustento da família, a estudante recorria à mãe, que mora bem próximo da favela e tem melhores condições financeiras.
"Ela tem condição de vida melhor, por isso que ela fala que é disputa de bens, que tudo é uma trama para gente tomar o que ela tem, mas isso é uma mentira", diz sobre a sua "genitora". Isso mesmo, depois que a avó tomou partido e ficou do lado do marido, investigado por praticar os abusos, a estudante não a chama mais de mãe. Os netos também mataram a avó viva, riscando de vez a matriarca da família.
A mãe descobriu as ações do avôdrasto no dia em que o chamou para ajudar a por um vídeo no notebook e passar na televisão para os pequenos assistirem. Ao sair do quarto para esquentar a comida, o suspeito colocou pornografia para ver junto das crianças. Quando retornou ao cômodo, a mãe ficou sem reação e desesperada. "Se ele via isso junto com os meus filhos, o que ele poderia fazer com eles?", se perguntou.
De imediato, o caçula pediu para ir ao banheiro, e quando a mãe foi limpá-lo, aproveitou a deixa para ter uma conversa tão necessária com as crianças. "'Ninguém pode mexer aqui, tá'?, eu disse. Eu nunca tinha tido essa conversa, e fiz como a fono ensinou, a falar olhando bem dentro dos olhos dele. A gente já estava há oito meses fazendo tratamento, quando fui levantar para abrir a porta ele falou: 'mãe, mas o tio lambe aqui'", recorda.
A partir daí o mundo caiu. A estudante confrontou a mãe que negou que o marido tivesse feito qualquer coisa. Apesar das crianças falarem que quando contavam para a avó que o tio "fazia brincadeira sem graça", ouviam da mulher que não era para contar a ninguém, e que ela brigaria com o marido.
O medo de denunciar passou pela cabeça da mãe. "Eu moro na favela, o pai tem problema com droga, eu só pensava que iam tirar meus filhos de mim. Eu morria de medo, mas me informei que eles têm alguém capacitado para avaliar isso", relata.
Foi a irmã que acompanhou a estudante até o conselho tutelar do Aero Rancho, que chegou dizendo que estava ali para tirar uma dúvida e não para acusar ninguém. Tremendo de medo, ela queria acreditar que tudo pudesse ser um mal entendido, e não um crime.
Do conselho a mãe foi encaminha para a Depca (Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente) onde os três foram ouvidos. Mãe e os dois filhos. A estudante explicou que deixava as crianças quando precisava estudar e que ao acompanhar o autista nas terapias, o menor também ficava aos cuidados da avó e do "tio", como os pequenos chamavam o avôdrasto. Aos sábados, eles tomavam banho de piscina na casa e era onde aconteciam parte dos abusos.
Na delegacia, a estudante soube que o marido da mãe tinha passagens pela Polícia e que seria chamado para ser ouvido e ter a chance de se defender durante a investigação. Desde então, a mãe não vive.
"Não tenho vida, porque é uma ferida que vou te falar, só quem é mãe sente. Os traumas deles estão aí, meu pequenininho tem baixa autoestima, é obeso. O autista tem raiva de tudo, odeia homem e fala: 'mãe, não casa de novo, pelo amor de Deus'. O que esse homem fazia? E eles perderam a avó, mataram ela viva, porque ela se calou e falou para os outros que é mentira", desabafa.
Entre lágrimas, a estudante diz que segura o choro na frente dos filhos e que tem tido ajuda psiquiátrica. Na semana passada, quando houve a operação Araceli, do Ministério Público Estadual com o objetivo de combater crimes praticados contra criança e adolescentes, a mulher sentiu tudo de novo.
"As pessoas falam pra mim esquecer, mas não tem como. A semana passada foi muito difícil pra mim. O que mais me dói é que tem gente que não acredita, porque se o cara fizesse isso, ele estava preso. É coisa que a gente pensa que só vai aparecer em filme, em sei lá onde, mas não, gente. Acontece", diz.
Hoje a estudante conta que não confia em ninguém. Os filhos dormem com ela e quando ela precisa, ficam sob cuidados da irmã. "O pai deles era drogado e tudo mais, mas nunca nem tomou banho com esses meninos", comenta.
Na semana da operação, a estudante diz que chegou a comentar na transmissão ao vivo da coletiva que as leis precisavam mudar, para que o processo caminhasse mais rápido. "É um passo que eu queria que a gente virasse. Eles estão indo no psicólogo, aí marcaram a audiência para o ano que vem, eu tenho até lá para mexer na ferida deles? Eu só queria que isso tudo terminasse logo. A gente só quer ir lá, contar e deixar a justiça julgar, mas demora demais e eu não consigo viver a minha vida", narra.
A resposta que a mãe teve sobre a demora nas audiências é pela pandemia. O Campo Grande News questionou a assessoria de imprensa do Ministério Público que informou que não pode comentar porque caso envolvendo criança é sigilo absoluto.
Depois de voltar a estudar, a mãe quer ter logo o diploma de assistente social em mãos para ajudar ainda mais as pessoas. "Quando eu descobri tudo, parei. Mas depois eu pensei, se os meus que estão debaixo da minha asa aconteceu isso... Eu me lembrei muito da história do menino Kauan [menino que foi estuprado e morto por um professor em 2017], que demorou para fazer o reconhecimento porque só tinha uma escova de dentes na casa para todos os irmãos. Penso quantas crianças não estão assim hoje?".
A previsão é de que a estudante se forme até 2023.