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Capital

Medo de acordar com despejo assombra famílias em área ocupada há 20 anos

Casas foram construídas pelos moradores e têm ligação de água e luz; falta a sonhada escritura

Idaicy Solano e Mariely Barros | 18/06/2023 10:15
Vila é composta por casas de alvenaria e barracos de madeira. Moradores aguardam por regularização fundiária. (Foto: Henrique Kawaminami)
Vila é composta por casas de alvenaria e barracos de madeira. Moradores aguardam por regularização fundiária. (Foto: Henrique Kawaminami)

Isolina Marques Baltazar sobrevive com os R$ 600 que recebe de auxílio do Governo Federal. Mulher de poucas palavras e analfabeta, a idosa não soube contar sua idade ou o mesmo o ano em que se mudou para a Vila Nova Capital, área de ocupação nas Moreninhas, na região Sul de Campo Grande. A realidade de dona Isolina é a de várias famílias da vila que, por conta da baixa escolaridade, não sabem nem por onde começar a buscar a legalização fundiária. Alguns esperam pela tão sonhada escritura há mais de duas décadas.

Cerca de dois meses atrás, Isolina recebeu a visita de um homem, mas não soube dizer quem ou de onde ele era. A idosa explicou para a reportagem apenas que recebeu um papel e depois nunca mais ninguém voltou. "Ele disse que tinha que regularizar a casa, mas minha filha, a gente não sabe o que está na Justiça, ninguém fala para a gente, a gente só tem o medo de tirarem a gente daqui".

Na época em que Isolina se mudou para a vila, morava de favor com os seis filhos no Bairro Canguru, na mesma região, mas o dono pediu que a família desocupasse a casa. A idosa soube da área ocupada durante a busca por um novo lar e viu ali a oportunidade de criar os filhos com o pouco dinheiro que tinha. Assim foi se formando a comunidade, em um terreno público perto do Kartódromo Ayrton Senna.

Achei a oportunidade para poder criar os meus filhos. Eu batalhei muito para poder criar eles depois que meu marido faleceu. Eu sonho com o dia em que vão colocar o terreno com o meu nome. Tenho medo de me tirarem. A gente, que é muito pobre, não tem para onde ir, não teríamos como pagar aluguel, não conseguimos pagar nem a água e a luz”, declara Isolina.

Isolina, assim como outros moradores, não sabe como recorrer à escritura da casa. (Foto: Henrique Kawaminami)
Isolina, assim como outros moradores, não sabe como recorrer à escritura da casa. (Foto: Henrique Kawaminami)

O cenário era composto apenas de barracos de lona quando Isolina chegou, mas hoje em dia a vila conta com pontos comerciais e moradias de alvenaria bem estruturadas, de dois a três cômodos, que abrigam famílias de cinco pessoas ou mais. Ali, quase todos sobrevivem de benefícios cedidos pelo governo e salário mínimo.

As casas foram construídas tijolo a tijolo pelos próprios moradores, têm ligação regular de água e luz. A única coisa faltando é a tão sonhada escritura. O documento, para muitos, significa dormir à noite com a certeza de acordar pela manhã com o direito de permanência no local garantido.

Padrão de energia nas casas: a rede chegou após uma liminar do TJ. (Foto: Henrique Kawaminami)
Padrão de energia nas casas: a rede chegou após uma liminar do TJ. (Foto: Henrique Kawaminami)

O local onde dona Isolina criou os seis filhos é o mesmo onde a filha Cristina Abner, 42 anos, cria os dois filhos, de 6 e 11 anos. Cristina chegou a morar por alguns anos no Bairro Paulo Coelho Machado, mas voltou a morar com a mãe após o nascimento da filha mais velha, já que não tinha mais condições de bancar o aluguel.

A filha de Cristina nasceu surda e tem osteoporose, doença que atinge os ossos e deixa a mobilidade reduzida. A necessidade de cuidados em tempo integral fez com que a dona de casa tivesse que deixar o emprego. Agora, ela conta com a pensão do pai da filha e com o benefício que recebe através da Loas (Lei Orgânica de Assistência Social).

Parei de trabalhar para cuidar dela, e não tinha como pagar o aluguel. É difícil pagar o aluguel com um salário mínimo. Levo ela na escola e o menino na creche, mas como ela é doentinha tem dias que prefiro ficar com ela o dia todo”, explica Cristina Abner.

Cristina voltou a morar com a mãe, por não ter condições de pagar aluguel após deixar emprego. (Foto: Henrique Kawaminami)
Cristina voltou a morar com a mãe, por não ter condições de pagar aluguel após deixar emprego. (Foto: Henrique Kawaminami)

A atendente de padaria Rosmarina da Silva, 58 anos, mora no local com a família há pelo menos 17 anos e pagou o valor de R$ 2.500 pelo terreno. Na época, havia apenas barracos e a energia era fornecida por uma ligação irregular feita em um bairro vizinho. A água era "puxada" do kartódromo.

A atendente explica que, há muitos anos, receberam a visita de uma equipe de engenheiros, que fez a medição de alguns terrenos, incluindo o dela, e colocaram numeração nas casas. Depois disso, Rosmarina diz que ninguém voltou para discutir a documentação, e ela nunca foi atrás da escritura porque não sabe como ir atrás, "nunca tive aconselhamento e nem sei mexer com essas coisas".

Tenho a expectativa de ter tudo no papel, todo mundo aqui queria ter sua escritura. Fico com medo de alguém tomar o terreno. Às vezes, tenho medo de investir no muro, na casa, é uma angústia não saber quando a casa vai ser nossa”, declara Rosmarina.

Rosmarina sonha com a escritura, mas não sabe como, nem a quem recorrer. (Foto: Henrique Kawaminami)
Rosmarina sonha com a escritura, mas não sabe como, nem a quem recorrer. (Foto: Henrique Kawaminami)

Apoio da Defensoria - Se água e luz chegaram à comunidade, foi após terem pedido apoio à Defensoria Pública. Os relatos chegaram à instituição em 2017 e uma ação foi apresentada à Justiça. Por força de uma decisão do Tribunal de Justiça, no ano seguinte as concessionárias foram forçadas a levar a rede. Mas não foi uma batalha fácil, porque as empresas tinham como argumento o fato de os moradores não terem documentação para comprovar a propriedade ou posse. Somente a partir do final de 2021, uma portaria da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) afastou a exigência desta documentação.

Tanto que os moradores conseguiram o acesso por força de uma ordem do TJ mas a ação da Defensoria foi julgada improcedente, uma vez que a recusa das concessionárias tinham amparo contratual.

A Prefeitura teve uma participação menor no processo e apenas confirmou que parte da área em que vivem as famílias é pública, mas não há informações precisas sobre a extensão da ocupação nos terrenos da região. Já a área vizinha, do kartódromo, pertence à Federação de Automobilismo.

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