Montaigne e o papel de um prefeito
No verão de 1585, o prefeito de Bordeaux, uma das mais famosas cidade da França, soube, no conforto de seu castelo nas proximidades da cidade, que a praga da peste bubônica havia explodido em sua cidade. Aqueles que podiam fugir para o campo estavam saindo da cidade enquanto aqueles que não podiam estavam morrendo "como moscas". O que esse prefeito podia fazer? Seu mandato estava quase no fim. Seu último dever oficial era participar da cerimônia de transição, outro prefeito assumiria o comando dos destinos da cidade. Mas ele estava preocupado com o destino daqueles que não podiam sair de dentro dos muros da cidade.
"Minha vida vale uma festa?"
Com as duas mãos nas rédeas de seu cavalo, o prefeito foi até a cidade. Perguntou ao conselho municipal se sua vida valia uma festa de transição. Não recebeu resposta. Voltou ao seu castelo. Quando a praga desapareceu, mais de 14.000 pessoas tinham falecido. Era um número estrondoso, equivalia a um terço da população da cidade. Quanto ao ex-prefeito, havia voltado para uma tarefa que julgava premente: a redação de seus "Ensaios", uma obra literária que atravessou os séculos e continua fundamental para o pensamento humano.
Montaigne era um político que combatia os extremismos.
O prefeito era Michel de Montaigne. Conhecido hoje como o autor dos "Ensaios", o clássico da auto-reflexão e do auto-conhecimento. Mas enquanto viveu, Montaigne era conhecido como um político. Sua cidade era um dos principais centros dos extremismos. As pragas bacteriológicas e teológicas do final do século XVI dominavam seu mundo. Uma série de oito conflitos entre católicos e protestantes -repletos de massacres entre os dois lados - devastaram a região entre 1562 e 1598. Montaigne era conhecido e desprezado pelos dois lados. Era alguém que, pelo bem de todos, tentou encontrar um terreno em comum entre os dois contedores. Montaigne nunca conseguiu. Os extremistas continuaram se matando. Mas, como nenhum desses extremistas, soube encontrar a verdade do que ocorria e passou para a história.
"A guerra é um desastre lucrativo".
Montaigne foi o primeiro pensador a denunciar a essência das guerras. Utilizando da metáfora do açougueiro, mostrou que as guerras são um desastre lucrativo. Mas ele enxergou muito mais. As matanças mútuas o prepararam para a peste bacteriológica. A crueldade e a fúria, a ambição e a avareza que consumiram os dois lados o levaram a pensar na importância do "eu", do "indivíduo". Também foi Montaigne que propôs aos professores que o verdadeiro papel de um mestre não era informar seus alunos e sim formá-los, prepará-los para o mundo real. Só pensando como indivíduo - e não como um carneiro no rebanho que vai ao matadouro - só com uma prodigiosa educação, havia saída para a humanidade.
Camponeses cavando suas próprias covas.
Tal como uma fila da Caixa Econômica, os camponeses da época de Montaigne cavavam suas próprias covas. Foi esse espetáculo de horror que Montaigne presenciou na viagem de volta para seu seguro castelo. Nele viveria por muitos anos com sua família. Montaigne não foi um herói. Não conseguiu convencer seus conterrâneos a viverem em paz, a esquecerem sua disputas teológicas. Também não mandou fechar os muros de sua cidade para evitar a peste bubônica que chegava. As autoridades que abandonam seus cidadãos à própria sorte são esquecidas rapidamente. Ninguém lembra do prefeito Michel Mongtaigne. Um homem que lutou... mas era tido como um inútil. Mas ele soube enxergar o mundo que o cercava. Um mundo repleto de avareza. Um mundo onde poucos comerciantes levaram à morte milhares de seus amigos e clientes ao não permitir o fechamento dos portões da cidade.