Os advogados podem salvar o mundo?
Em um dos textos mais antigos a chegar a nós, gravado em uma tabuleta em escrita cuneiforme, oriundo de um poema do segundo milênio de nossa era, o povo de Uruk, uma das primeiras cidades que o humano construiu na Mesopotâmia, no atual Iraque, clamava aos deuses que o libertasse da tirania do rei Gilgamesh:
"A cidade é dele, ele se gaba
Com sua arrogância, ele se elevou
Pisoteando os cidadãos, como um touro selvagem.
Ele é o rei. Ele faz o que bem deseja."
Quem eram os advogados do oprimido povo de Uruk? Os historiadores são unânimes: não havia essa ocupação> Não há espaços para o advogado na tirania, em uma sociedade sem regras. Enquanto os médicos, engenheiros, guerreiros, agricultores, sacerdotes e comerciantes viram seus ofícios se desenvolverem desde o início dos tempos, os advogados só tiveram oportunidade de desabrochar bem mais tarde.Afinal, a advocacia depende de um Estado mais sofisticado, que se oriente por um sistema jurídico definido.De que valeria um advogado em um mundo dominado por tiranos?
Quando os religiosos exerciam a advocacia.
No começo, a lei era parte da religião. Foi assim com os hindus, gregos e romanos. Os antigos códigos das cidades eram um conjunto de ritos religiosos, de orações e ao mesmo tempo de disposições legislativas. As regras jurídicas se mesclavam aos ditames religiosos.
O Código de Manu, uma das primeiras "legislações" escritas pelo indianos, no século II antes de nossa era, estabelecia que os "sábios podem apresentar argumentos e fundamentos para quem necessitasse defender-se perante as autoridades". Esses sábios eram religiosos, atuavam como advogados.
"Não matarás", diz uma das tábuas de Moisés. Contudo na mesma Bíblia, há inúmeras referências onde o "não matarás" é penalizado com a morte ou aplaudido pela multidão. Portanto, conforme as circunstâncias, matar poderia ser ou não uma violação ao mandamento divino. Sacerdotes assumiam, também a posição de advogados. Afinal, nessas primeiras sociedades teocráticas, asordens divinas eram a fundamentação do direito.
Como a lei era revelada pela divindade - para os cretenses a lei fora ditada por Zeus; para os atenienses, por Apolo; para os romanos, pela deusa Egéria - a norma poderia ser alterada. Era sagrada e imutável. Admitiam-se novas leis, mas nunca a alteração das que já existiam. Como eram manifestação dos deuses, sua interpretação ficava restrita aos sacerdotes. Na Grécia não havia advogados. O cidadão deveria se defender diretamente. Não se admitia que outra pessoa falasse por ele. Mas é ali que nasce uma inovação. Tanto o acusado como o acusador podia receber aulas de "erística" - a arte de debater. Os sofistas eram conhecidos por desenvolver e ensinar técnicas de como conduzir uma discussão. Esses sofistas eram mal vistos porque cobravam por suas lições.
Os logógrafos clandestinos.
Mas quem eram os famosos oradores gregos e romanos? Eles só podiam defender a si próprios e às questões que fossem comuns a todos, as questões públicas. Para os ricos, era possível contratar os serviços dos "logógrafos" - aquele que prepararia o discurso do acusado ou do acusador, um bom escritor. Mas essa atividade era quase clandestina, era vergonhoso alguém admitir que outra pessoa havia elaborado sua fala.
Os primeiros advogados, o Voto de Minerva e o pró-réu.
Só muito excepcionalmente admitia-se que um terceiro se apresentasse em nome do interessado. Esse "protoadvogado", esse primeiro advogado, chamado de "synegoros" ou "syndikos", não era remunerado por sua atividade. Começava a existir advogados - "ad vocare", chamado para falar - entretanto, a advocacia, como profissão, não existia.
É interessante observar que no mais famoso julgamento grego, Orestes tenha sido representado por um advogado: nada menos que o deus Apolo. Para quem não se recorda, Orestes mata a mãe, Clitemnestra, para vingar a morte do pai, Agamêmnon. Isso porque a mãe havia, por sua vez, assassinado o pai. Orestes é levado a julgamento, realizado por um juri composto por doze cidadãos e presidido pela própria deusa Atenas. A acusação é feita pelas "Fúrias", deusas antigas. Com o empate entre os membros do júri, Atenas, com seu famoso Voto de Minerva (pois é este seu nome para os romanos", absolve Orestes, estabelecendo o conceito eterno de que na dúvida, deve-se pender para o réu. Apolo é o deus da luz, associado à clareza, o deus é, portanto, o primeiro advogado de que se tem notícia na história.
Sócrates e Jesus Cristo.
No famoso julgamento de Sócrates, que ocorreu em 399 a.c., é o próprio filósofo que apresenta sua defesa. No mais famoso julgamento de todos os tempos, o de Jesus Cristo, na terceira década de nossa era, também não há advogados. O Nazareno se defende sozinho tanto no Sinédrio, onde é julgado pelas autoridades judaicas, como, em seguida, diante dos romanos. Sem advogados, Sócrates e Jesus são condenados. Quase não falaram, pouco se defenderam. Talvez a história fosse outra se estivessem representados....
Os advogados romanos especialistas.
No início, em Roma, não havia advogados para todos os casos. Só admitia-se a representação de um terceiro perante o tribunal - "agere nomini alieno" - em limitadas hipóteses. Se o caso se relacionasse a questões públicas chamavam o "pro populo". Se o defendido estivesse preso chamavam o "pro libertate" e se o interessado fosse incapaz ou tutelado, vinha o " agere pro tutela". Tratava-se, pois, de casos específicos.
No fim do século IV a.C., porém, surgiu em roma uma tradição de análise das decisões dos tribunais laicos, inclusive com a inauguração de uma literatura jurídica. Aparecem os juristas, em regra aristocratas que se notabilizavam pelo conhecimento das normas legais e do comportamento dos tribunais.
Também havia quem se dispusesse a defender os interesses de outro nos tribunais. Eram procuradores " in iure" e "in iudicio". Passou a se chamar de "advocatus" essa pessoa, eloquente e na maior parte das vezes munida de conhecimento jurídico, que intervinha perante os magistrados em benefício de uma das partes. Mas eles não eram remunerados.
Proibia-se tanto o "pactum de quota litis", no qual o advogado ajustava receber um percentual em caso de vitória, como também era vedado o "palmario", um valor determinado em caso de vitória. Nem percentual, nem valor combinado, todo dinheiro era proibido. Assim, os primeiros advogados exerciam suas atividades com a finalidade de angariar fama de bons oradores, visando a uma carreira política.
As escolas de Direito: de Roma a Beirute.
Não a toa, muitos dos melhores advogados atuais são descendentes de italianos ou de libaneses. É a força da tradição secular. À partir de Augusto, Roma observa a criação de escolas de Direito. As mais famosas foram as escolas dos sabinianos e dos proculianos. De forma geral, pode-se dizer que os proculianos preferiam uma leitura mais objetiva e racional das normas, ao contrário dos sabinianos, que professavam uma interpretação mais apegada ao espírito da lei. Diz-se ainda que os sabinianos eram conservadores, ao passo que os proculianos, mais progressistas.
Outra famosa escola de Direito da mesma época se estabelecem em Beirute. E logo a seguir, tornou-se o principal centro de estudos jurídicos do mundo, oferecendo um disputado curso de cinco anos. A instituição libanesa fecha em 551, em decorrência de um terremoto. Contudo, até hoje a bandeira de Beirute contém o mote: "Berytus nutrix legum", isto é, " Beirute, mãe das leis".