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Comportamento

Tentando salvar brinquedos, crianças descobriram como é perder o lar

Guarda Civil Metropolitana realizou duas desocupações em terreno com famílias no bairro Lagoa Park

Aletheya Alves | 08/08/2023 06:55
Depois de desocupação, crianças brincam com copos de água doados. (Foto: Aletheya Alves)
Depois de desocupação, crianças brincam com copos de água doados. (Foto: Aletheya Alves)

Enquanto um grupo de adultos seguia em discussões com a GCM (Guarda Civil Metropolitana) e Defensoria Pública nesta segunda-feira (7), parte das crianças que já havia retornado da escola se concentrava a alguns metros com os novos “brinquedos” ao lado das mães. Com itens quebrados durante a desocupação no bairro Lagoa Park e copos plásticos em mãos, os olhos atentos se uniram facilmente à voz ainda fina para contar sobre os sentimentos de como é perder o lar que conheciam.

O maquinário da Prefeitura de Campo Grande continuava retirando os resquícios da desocupação enquanto o grupo com cerca de 10 crianças levantava poeira próximo ao terreno da Rua Lagoa Santa. E, quando chegou a hora deles falarem sobre o que viram, sentiram e estão vivendo, as frases começaram baixinhas, receosas com quem vem de fora: “eu fiquei com medo, chorei”, “eu não fiquei triste, fiquei com raiva”, “eu não chorei não”.

No grupo, ninguém sabia o que significava ver as paredes de casa desaparecendo, até porque todos eles ainda estão aprendendo sobre o que é morar em uma ocupação. Com a chegada dos homens fardados e maquinários, vieram também os sentimentos ainda mais confusos para quem estava preocupado em ir para a escola e brincar do campinho de terra adaptado.

Joana*, de 11 anos, “protegia” um boneco de plástico com terra e um pneu. Sentada no chão, contou que o personagem alaranjado foi um de seus brinquedos recuperados. Ao lado dele, metade de uma bolinha de plástico e o que já foi a roda de um carrinho.

Joana mostra o que restou dos brinquedos após sua casa ser derrubada. (Foto: Aletheya Alves)
Joana mostra o que restou dos brinquedos após sua casa ser derrubada. (Foto: Aletheya Alves)
Vaso com planta é um dos itens que ela quer levar para o novo lar. (Foto: Aletheya Alves)
Vaso com planta é um dos itens que ela quer levar para o novo lar. (Foto: Aletheya Alves)

Hoje, ela sabe conjugar o verbo “despejar” e conta que até semana passada não conhecia o sentimento de não ter mais uma casa. Isso porque a ação desta segunda-feira foi, assim como o nome do dia, a segunda. Na semana passada, o espaço já havia sido desocupado.

Enquanto sonhava com a casa que ainda não existe, foi ela quem respondeu não ter ficado com medo, mas com raiva do que aconteceu. Repetindo a história já contada pelos adultos, a menina diz que viu o lar sendo levado pelo maquinário e, de noite, precisou dormir com os amigos mais uma vez.

Rememorando como tem sido viver por ali, Joana conta que tinha um quarto com a irmã antes da primeira ação. “Tinha parede, uma cama e duas cobertas, uma para se cobrir e outra para ser o travesseiro. Mas aí, na segunda casa (após a primeira desocupação), já foi diferente”.

Grupo conta que precisou dormir junto durante a noite de domingo para segunda-feira. (Foto: Aletheya Alves)
Grupo conta que precisou dormir junto durante a noite de domingo para segunda-feira. (Foto: Aletheya Alves)
Com o carrinho desaparecido, apenas controle remoto ficou. (Foto: Aletheya Alves)
Com o carrinho desaparecido, apenas controle remoto ficou. (Foto: Aletheya Alves)

Sem a privacidade de dormir apenas com a irmã, a cama precisou ser compartilhada com outras crianças que também perderam o teto. “Eles fizeram um quarto para as crianças e um para os adultos. Aí a gente ficou dormindo junto, igual na noite de hoje”, diz a menina.

Com os outros objetos pessoais levados para a casa da avó, como a mochila da escola, o terreno ficou parecendo ainda menos o lar.

Enquanto ouvia Joana falar, Mateus*, de 10 anos, me chamou para brincar enquanto ele e os amigos contavam que depois de tudo, também tentaram salvar os brinquedos. “Eu fiquei mal vendo. Eles foram puxando as mães, deu medo”.

Cama e motoca se uniram no espaço reservado para guardar o que sobrou. (Foto: Aletheya Alves)
Cama e motoca se uniram no espaço reservado para guardar o que sobrou. (Foto: Aletheya Alves)
Depois de susto, meninos se mantiveram juntos. (Foto: Aletheya Alves)
Depois de susto, meninos se mantiveram juntos. (Foto: Aletheya Alves)

Garantindo que não queria ir embora, o menino explica que tem dois irmãos mais novos que, assim como ele, ainda estão processando tudo o que aconteceu. “Nossa primeira casa tinha parede, tinha teto, fogão, mas na segunda tinha só parede. Meu pai falou que a gente vai ter outra casa agora”, explica.

Enquanto relembrava sobre como brincar de “pico picolé”, aproveitou para dizer como seria a casa dos sonhos. “Vai ser aqui mesmo”, introduziu.

“Ia ter quatro andares, uma piscina, aí uma piscina de bolinhas e eu ia ter um quarto para mim”. Perguntei se não ia mais querer dividir mesmo o espaço com os dois irmãos e, rindo, disse que os pequenos até poderiam entrar no quarto dos sonhos para brincar.

Apesar do susto, Mateus defendeu que gostava da antiga casa. “Aqui tem criança, dá para brincar, eu gosto”. Porque assim como os outros do grupo, a preocupação maior, já dizendo que tinham superado o choro da noite anterior, era essa, brincar.

Apesar de medo, preocupação em brincar e sonhar com a nova casa são maiores. (Foto: Aletheya Alves)
Apesar de medo, preocupação em brincar e sonhar com a nova casa são maiores. (Foto: Aletheya Alves)

Desocupação e doações - No domingo (6), equipes da GCM foram ao terreno do Lagoa Park para um novo despejo das cerca de 50 pessoas que estavam morando por ali. Ontem, acompanhados de maquinários para retirada do que havia sobrado, os guardas retornaram para o local, assim como equipe da Defensoria Pública.

Durante uma reunião com a Prefeitura, os moradores acordaram que seriam cadastrados em programas sociais, enquanto outros permaneciam ao lado do terreno. Em relação às ações da Defensoria Pública, o órgão irá investigar denúncias de abuso na desocupação.

Agora, os moradores também pedem por doações para as crianças. Desde leite e fraldas até roupas, o relato é de que toda ajuda é bem vinda. As contribuições devem ser entregues diretamente para eles, na Rua Lagoa Santa.

(*) Os nomes usados no texto são fictícios para conservar a identidade das crianças. 

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