Duas palavrinhas sobre Democracia e liberdade de expressão
Quando falamos em democracia, uma das questões que se coloca é a necessidade de garantir que haja espaço para o exercício do direito à liberdade de expressão, independente da sua posição social, do seu credo religioso ou do seu posicionamento político. O que se pretende é dar segurança e condições para que diferentes orientações ideológicas, estejam elas contempladas ou não no governo, encontrem seu lugar nos espaços de poder, afirmando, dessa forma, a dimensão pluralista da estrutura social, reconhecendo, inclusive, o caráter construtivo dessa diversidade. A discordância, a crítica, o desentendimento e a divergência não são vistos, de forma alguma, como algo negativo, mas como parte fundamental do processo de organização do Estado, garantindo que diferentes perspectivas dialoguem e construam, a partir do conflito, consensos provisórios que vão delimitar a ação governamental. Resumindo, já que nosso espaço é bastante limitado, as políticas públicas só são eficazes na medida em que são capazes de expressar as diversidade que constitui o cenário do exercício de poder, desde que os fundamentos básicos da democracia, como o respeito as instituições e aos valores da cidadania, sejam respeitados e garantidos por essas perspectivas, negando, de forma incisiva, qualquer arroubo autoritário que tenha por objetivo abolir o regime constitucional e destruir o Estado democrático de direito.
Isso significa que a prerrogativa da liberdade de expressão possa ser entendida como um direito absoluto, sem limites. Muito pelo contrário. Em minhas aulas, tanto no curso de direito quanto nos cursos de história e relações internacionais, sempre ressalto algo que é óbvio, mas que, diante de uma série de contradições que expressam a singularidade do processo de formação da sociedade brasileira, precisa ser sempre lembrado e relembrado. Democracia não se resume a uma forma de governo. Trata-se, na verdade, de um mecanismo específico de organização política da sociedade marcada pela presença constante de limites que são construídos a partir do diálogo permanente entre os diferentes segmentos constitutivos da estrutura social que se dá no horizonte dos espaços de poder.
Esses limites, ao contrário do que se popularizou, principalmente nos meios midiáticos da direita e da extrema-direita, pautam-se, sempre, pelo outro, e entendem que sua legitimidade está na capacidade que toda a estrutura política tem de garantir que o diverso se manifeste sem constrangimentos. Ou seja, o que avaliza a legitimidade dessa liberdade é a garantia de que o meu direito a usufruir dessa prerrogativa não se constitua numa limitação ao exercício do direito pelo outro, pelo que discorda.
Além do mais, numa sociedade marcada por complexas e contraditórias lógicas que são frutos de perspectivas econômicas que acabaram por gerar perversas dinâmicas de exclusão e desigualdade, o Estado acaba tendo a função estratégica de construir, através de políticas públicas claras, de caráter inclusivo, estruturas de equilíbrio que garantam aos setores historicamente marginalizados o acesso aos espaços de poder para que, dessa forma, corrijam-se essas disparidades. Essa perspectiva entende que, numa sociedade democrática, estabelecer uma igualdade sem levar em conta as diferenças que são oriundas de projetos econômicos e políticos marcadamente estruturados em dimensões ideológicas racistas, sexistas e classistas, é aprofundar o abismo da desigualdade e perpetuar lógicas perversas de exclusão e discriminação.
Nesse sentido, pensar o exercício da liberdade de expressão pressupõe estabelecer limites claros, muito bem definidos, no que diz respeito a essas dinâmicas de exclusão e marginalização. Não há espaço, numa sociedade verdadeiramente democrática, para que práticas e falas racistas, homofóbicas e misóginas, dentre tantas outras que revelam os traços mais nefastos da nossa constituição enquanto sociedade, sejam toleradas e proferidas, alegando, de forma cínica, o direito a liberdade de expressão. Essa liberdade de expressão, tão fundamental para a constituição republicana, só se justifica, do ponto de vista da cidadania, quando não se constitui como um limite ao exercício dos direitos civis e políticos de toda uma parcela que foi historicamente excluída dos espaços de poder e que, consequentemente, tornou-se vítima de lógicas autoritárias de dominação.
Toda democracia só se constitui enquanto democracia na medida em que estabelece limites e isso é parte fundamental dos mais sofisticados arranjos teóricos que envolvem o direito constitucional e a ciência política. Esses limites são uma garantia fundamental para que os que sempre foram vítimas de lógicas de poder perversas que os fragilizaram, possam ter acesso aos espaços de poder que sempre lhes foram negados.
(*) Marcelo Tadeu dos Santos é sociólogo, doutorando em História pelo PPGHIS/UnB.