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O abuso da recomposição dos preços dos planos de saúde na pandemia

Carlos Ocké e Ana Carolina Navarrete (*) | 24/02/2021 13:24

Diante de um futuro incerto, calcular e definir o preço de um bem ou serviço que será prestado a longo prazo pode provocar uma grande polêmica, e a solução encontrada para acompanhar o aumento dos custos é, usualmente, o reajuste de preços.

No caso dos planos privados de saúde, não poderia ser diferente: como, em geral, são contratos de longa duração, as mensalidades (prêmios) são reajustadas a cada 12 meses. Nos reajustes por faixa etária o processo é distinto, uma vez que a mudança nos preços está relacionada à probabilidade de o indivíduo adoecer em seu ciclo de vida (em outras palavras, ao risco que aumenta com o passar do tempo).

Assim, o consumidor paga o valor definido no início do contrato, utilizando ou não os serviços durante o ano. O modelo impõe uma responsabilidade às operadoras: ao reajustar a mensalidade, grosso modo, elas devem fazer um exercício estatístico para definir o percentual de reajuste, considerando o desempenho da carteira de beneficiários nos dois anos anteriores e a estimativa do comportamento da taxa de sinistralidade do ano seguinte.

Entretanto, o que acontece durante a pandemia da covid-19, quando as incertezas econômicas e epidemiológicas tornam mais complexo o cálculo da distribuição de probabilidade?

Ao contrário das expectativas, as recomendações de isolamento social significaram a redução da procura por serviços médico-hospitalares na saúde suplementar, e, em alguns casos, inclusive da demanda espontânea, conforme indicam os boletins de maio e junho da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Com menores despesas assistenciais e a manutenção do valor das mensalidades, o lucro das operadoras triplicou, passando de R$ 3 bilhões no primeiro trimestre para mais de R$ 10 bilhões no segundo trimestre de 2020. A sinistralidade foi a mais baixa em nove anos e voltou a ficar em torno de 75% apenas em outubro — ainda assim, abaixo da série histórica para o período.

Do lado dos consumidores, a situação é radicalmente oposta diante da crise econômica e sanitária. O Brasil apresenta a menor taxa de ocupação em trinta anos e a redução da renda per capita, associada à inflação, corrói o poder aquisitivo das famílias e trabalhadores. Para responder a esse desequilíbrio, segundo a imprensa, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), pressionou a agência reguladora a tomar providências, que vieram por meio da suspensão dos reajustes anuais e por faixa etária dos planos de saúde individuais e uma parte dos coletivos entre setembro e dezembro de 2020.

Apesar da suspensão, os números das operadoras continuam positivos — fato que suscita ainda mais espanto diante do anúncio feito pela ANS em novembro, de que os reajustes suspensos em 2020 terão de ser absorvidos pelos usuários em 2021. A justificativa da agência para a medida foi uma suposta necessidade de evitar a “desestabilização das regras e dos contratos estabelecidos”.

Algumas perguntas emergem, imediatamente, e não podem ficar sem resposta: faz sentido aplicar, em 2020, ano em que tivemos a taxa de sinistralidade mais baixa da década, uma recomposição de preços baseada no comportamento do mercado em 2018 e 2019? O reajuste de 2021 levará em conta a taxa de sinistralidade de 2020? Quanto as operadoras efetivamente deixaram de receber com a suspensão do reajuste por causa da pandemia? Essa suposta perda é maior ou menor do que a economia de recursos no período?

Em plena pandemia, quando o SUS amplia sua legitimidade diante das classes popular e média, os desafios da regulação do mercado de planos de saúde são complexos e qualquer solução técnica deve respeitar o interesse público. Há assimetria evidente entre o poder econômico das empresas e os consumidores, e a lei é inequívoca ao delegar à ANS a responsabilidade de equilibrar essas forças. Impor a recomposição reforça a captura da agência pelo lado mais forte, esvaziando seu próprio propósito regulador.


(*) Carlos Ocké é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Ana Carolina Navarrete é advogada e Coordenadora do programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)

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