Lei de Abuso de Autoridade não criminaliza uso de algemas, avaliam especialistas
Alvo de críticas após morte de policiais, lei não restringe uso de algemas e súmula do STF prevê medida em caso de risco potencial
O uso de algemas em casos de suspeitos levados às delegacias não caracteriza infração à Lei de Abuso de Autoridade (13.869/2019), caso seja avaliado que há risco envolvido, analisam especialistas em Direito consultados pelo Campo Grande News. A imobilização poderia ter evitado as mortes de dois policiais civis esta semana, em Campo Grande.
A recente implementação da lei e as restrições previstas causam insegurança sobre até onde vão os limites de ação. A avaliação é que as Academias de Polícia precisam atualizar os protocolos nos cursos de formação e promoção, criando uma “cartilha” de procedimentos diante da nova legislação.
A lei foi amplamente criticada por integrantes da Polícia Civil como fator restritivo às ações dos investigadores de Antônio Marcos Roque da Silva, 39 anos, e Jorge Silva dos Santos, 50 anos, assassinados a tiros na última terça-feira (9), dentro de viatura descaracterizada, quando conduziam duas pessoas à Derf (Delegacia Especializada de Roubos e Furtos).
Eles conduziam o vigilante Ozeias Silveira de Morais, 45 anos, sem ficha criminal e na condição de testemunha, na investigação de roubo a joalheria ocorrido em maio deste ano, na Avenida Calógeras. Por isso, não caberia algemá-lo ou revistá-lo, conforme informação divulgada pela Polícia Civil sobre o caso. Ozeias levava em uma pochete uma arma, usada para matar os investigadores.
O professor de Direito, Fernando Lopes Nogueira, doutor em Direito Penal e delegado aposentado em MS, não quis comentar diretamente o caso por desconhecer aspectos específicos da investigação, mas explica que a lei restringe, porém, não inibe a ação, desde que feita dentro do parâmetro legal. “O policial tem que avaliar a situação”.
Nos 45 artigos da Lei de Abuso de Autoridade, nenhum deles trata de restrição ao uso de algemas. Na sanção da lei, em setembro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro vetou 19 artigos, entre eles, o que previa pena de um ano a seis meses de prisão para o policial que utilizar algemas em situações em que não houver resistência à prisão, ameaça de fuga ou risco à integridade do preso.
O artigo foi vetado sob justificativa de que a súmula vinculante 11 do STF (Supremo Tribunal Federal) já trata do tema. Nela, consta que uso de algemas é lícito em caso de resistência, receio de fuga, perigo à integridade física própria ou alheia, justificada a excepcionalidade por escrito.
Em tese, o caso dos policiais civis poderia ser enquadrado na súmula do STF. Isso porque Ozeias foi apontado pelo tapeceiro William Dias Duarte Comerlato na investigação do roubo a joalheira. William disse que teria anunciado a venda das peças a pedido do vigilante, tio da mulher dele.
Denunciado por outro suspeito, Ozeias poderia não ser enquadrado como testemunha, já que estaria envolvido em roubo de joias e seria um risco à integridade dos policiais no curso da investigação.
O professor de Processo Penal da Faculdade Insted, Márcio de Campos Widal Filho, preferiu não tratar diretamente do caso das mortes dos policiais civis, dizendo que é preciso aguardar a investigação, mas, ao avaliar a lei, também enfatizou que não criminaliza o uso de algemas.
Widal também cita a súmula do STF que regula o uso de algemas, mediante situação de risco. O procedimento é previsto justamente no transporte de suspeitos dentro das viaturas, até para evitar comportamentos repentinos.
O enquadramento como testemunha cai nas regras da Lei de Abuso de Autoridade, que não autoriza a condução coercitiva sem prévia intimação para que compareça voluntariamente.
Os dois especialistas avaliam que lei é recente e ainda será tema de debates. “A lei entrou em vigor em janeiro, muitas leis levam tempo para se sedimentar”, diz Nogueira, lembrando que já há questionamentos em tramitação no STF, porém, nenhuma jurisprudência que tenha pacificado “o limite do poder, do possível, do permitido e do proporcional”.
Para Widal, a lei veio para atender necessidade de se evitar o cometimento de excessos, mas é passível de discussão. “Nenhuma lei nasce perfeita, nenhuma lei vem sem crítica”.
Os dois avaliam que as adequações precisam ser revistas pelas Academias de Polícia Civil e ter protocolo de ação. “Na atividade policial, há situações que te pegam de surpresa, não é trabalho de repetição; é a busca da melhora da legislação que permite resguardar a integridade das pessoas e dos policiais”, avalia Nogueira, que trabalho como delegado em MS por vinte anos e, há seis meses, se aposentou.
O delegado-geral da Polícia Civil, Marcelo Vargas, tem outra avaliação da súmula do STF e discorda da interpretação ao analisar o caso das mortes dos policiais civis. Segundo ele, até então não tinha confirmação do envolvimento e Ozeias no roubo. “Denuncismo não é prova suficiente para dizer que é autor do roubo, havia indícios, mas não suspeitas fundadas”.
Vargas afirmou que o caso específico vai gerar estudo na Academia de Polícia Civil e que ele será dissecado. “E nós vamos fazer algumas normas”, garantiu.
#matéria alterada às 18h31 para atualização de informações