Frio castiga quem mora em “favela vertical” e vive medo de ficar sem teto
Invasão caindo aos pedaços é moradia possível para famílias que não têm para onde ir e esperam dias melhores
No dia 6 de junho, uma terça-feira, megaoperação policial jogou holofotes em problema esquecido, que se arrasta no Bairro Mata do Jacinto há duas décadas. Mas o que já era perrengue para as famílias invasoras do Residencial Atenas, o chamado “Carandiru”, só piorou depois que a luz foi cortada e frio congelante se instalou na Capital.
Na tarde desta quinta-feira (15), pela primeira vez em três dias e meio, o sol foi o refúgio para muita gente que está desde domingo batendo o queixo nos apartamentos úmidos e escuros dos blocos inacabados. Com a energia cortada há nove dias, banho de água quente é improvisado, com água fervida no fogão de quem ainda tem gás ou em fogareiro improvisado, no pátio do condomínio. Sem luz, famílias também perderam remédios e comida.
Mesmo assim, ninguém arredou o pé de lá. Moradores vivem medo diário de serem expulsos ou de verem o único teto que têm cair sobre as próprias cabeças. Mais ainda depois que chegou a notícia do pedido imediato de reintegração de posse feito pela Construtora Degrau Ltda., cerca de dez horas após a Operação “Abre-te Sésamo” entrar com tudo no local. Mas, quando perguntados “e agora?”, a resposta é em uníssono: “daqui a gente não sai”.
“Se a gente tivesse para onde ir não estaríamos aqui”, afirma moradora de 37 anos, que pediu para ter o nome omitido e vive no Carandiru com os filhos, de 8 e 13 anos, sendo que um deles sofre com epilepsia. Desempregada, ela diz não ter perspectiva de conseguir pagar aluguel tão cedo.
A mãe afirma que não tem nem o que cozinhar em casa, porque teve um botijão de gás apreendido durante a operação policial e, sem energia, perdeu a comida que estava na geladeira. “Cada dia faz comida na casa de um vizinho”, explica como estão sendo os últimos dias.
“Daqui ninguém me tira”, afirma o trabalhador autônomo Rafael Gabriel Ferreira, 21, que vive em um dos apartamentos com a mulher e os irmãos, de 14 e 16 anos, há seis anos. “Estamos comprando comida para o dia, porque não temos onde guardar. Está muito complicado”.
Catador de recicláveis, Heraldo Gondim Moraes, 55, é morador do Carandiru há 15 anos e diz ter se arrependido, mas só porque deixou uma invasão no Bairro Estrela Dalva para se mudar para o apartamento e acabou perdendo a chance da casa própria. “Me mudei porque morava em barraco e me disseram que tinha uma unidade vaga aqui. Mas, logo depois, cadastraram todos lá da nossa ocupação e hoje, todo mundo tem casa”.
Com hérnia no umbigo e sem conseguir trabalhar com carteira assinada enquanto aguarda cirurgia pelo SUS (Sistema Único de Saúde), ele até procurou outro lugar para morar, depois que viu a polícia vasculhar os blocos, mas não conseguiu dinheiro suficiente para o aluguel de R$ 900. “Só não levaram minhas coisas porque eu tinha nota de tudo”, revelou sobre o dia da operação.
Heraldo mora com a esposa e outros seis integrantes da família na obra inacabada. O apartamento no térreo foi sendo reformado aos pouquinhos, tem piso e varanda. “Foi um investimento que fizemos para nós mesmos”.
Na incerteza do futuro, hoje, ele só pensa em ter a energia religada. A mulher diabética perdeu a insulina. O catador admite que até refez uma ligação clandestina, mas diz que ainda não é possível ligar a geladeira ou o chuveiro quente. “O Cras [Centro de Referência em Assistência Social] trouxe doações de alimentos. Por isso, estamos conseguindo sobreviver”.
Para muita gente a vida parou. O medo de perder os apartamentos é real. Raquel Lanhete, 44 anos, mora com filhos e netos – oito pessoas no total – em outra unidade térrea e havia montado uma vendinha na janela da unidade, mas teve de fechar o comércio depois da operação policial e visita da concessionária de Energia. Sem luz, levou as crianças de 1, 3, 5, 6, 12 e 15 para barraco cedido em outra ocupação da cidade, a “Favela do Mandela”. “Vendia refrigerante, temperos, cigarros, mas ficou tudo bagunçado e ainda não conseguimos arrumar. Estou sem trabalhar por enquanto”.
Raquel diz que comprou o apartamento de outro invasor há seis anos e pagou R$ 6 mil. Ela sabia da possibilidade de ter de sair, mas sempre teve a esperança que um dia a situação dos moradores do residencial seria regularizada. Ela até deu upgrade na unidade em que mora, com janelas em blindex, reboco e pintura.
Perigo – Vistoria realizada pela Defesa Civil de Campo Grande atestou o risco de acidente iminente para moradores do Carandiru, com sinais de instabilidade e estruturas colapsadas nos blocos invadidos. Já o Corpo de Bombeiros, no dia 6, determinou a interdição dos prédios constatando o óbvio, que a construção inacabada “não possui as medidas de segurança contra incêndio e pânico”.
Os riscos na “favela vertical” são visíveis já no emaranhado de fios que levam energia clandestinamente para os apartamentos e encanamento todo para fora das paredes. A Energisa chegou a fazer 51 ligações regulares no local após decisão judicial em 2015. Contudo, atualmente, segundo a própria concessionária informou à Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, há no local “11 unidades consumidoras com contrato ativo e regular”.
Por isso, em nome dos moradores, os defensores Regina Célia Rodrigues Magro e Carlos Eduardo Oliveira Souza querem que a Justiça determine a regularização das ligações de luz imediatamente.
Ao Campo Grande News, a Águas Guariroba informou que as ligações de água existentes na invasão não são irregulares.
Reintegração de posse – Exatamente às 16h48, dez horas após megaoperação policial “acordar” os moradores do Carandiru, a Construtora Degrau, responsável por erguer blocos de apartamentos e abandoná-los, foi à Justiça para reaver o prédio invadido. O novo pedido feito em ação que tramita desde 2013 cita a “Abre-te Sésamo” como motivo para juiz determinar a “imediata reintegração de posse”.
A empresa alega que a ação policial evidenciou “a precariedade do local e risco à vida dos que ali moram”.
Em nome das famílias, a Defensoria Pública entrou no litígio e classificou a operação como “tentativa forçada de expulsão dos moradores, em evidente usurpação da função jurisdicional [das forças de segurança] para atender interesses privados”.
Os defensores Regina Célia e Carlos Eduardo questionam o empenho “repentino” dos órgãos de segurança em combater a criminalidade no local. Para a Defensoria, “a condução desastrosa da operação policial teve como desdobramento a violação da dignidade já fragilizada das famílias, ao acionar o Corpo de Bombeiros para realizar vistoria que interditou o local, gerando a notificação da Energisa para suspender o serviço de energia, deixando os moradores do Residencial Atenas sem o serviço essencial”.
Além da religação da luz, defensores querem o indeferimento do pedido de reintegração de posse feito pela construtora e que o TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) crie uma Comissão de Conflitos Fundiários para buscar uma solução para moradores.
Confira a galeria de imagens: