Entre desaparecimento e relatos de atentado, a dor da mais velha guarani-kaiowa
"Não era assim que acontecia antes, não tinha ameaça, bebida, nunca teve violência. Agora está pior do que antes", desabafa Eleonora, 105 anos. Ela é avó de Nísio Gomes, o líder indígena desaparecido desde sexta-feira.
Em meio à tensão depois de relatos de ataque ao acampamento de indígenas Guaiviry, encontrar uma senhora de 105 anos, avó de Nísio Gomes, a liderança desaparecida desde sexta-feira, é um achado.
O mais surpreendente não é nem Eleonora Vasque ter mais de um século de vida. É ela ter a idade que tem, nunca ter saído da aldeia em que nasceu, ter visto de perto as lutas pela conquista de terras e agora saber da possível execução do neto de forma covarde.
Mãe de 14 filhos, ela carrega no corpo e no rosto marcado a história da sobrevivência dos guarani-kaiowa.
O Campo Grande News foi até a aldeia Amambai em busca de relatos da vida de Nísio Gomes, líder indígena que desapareceu depois de um atentado no acampamento Guaiviry. O clima de tensão já relatado na área ultrapassa os limites entre as fazendas Querência Nativa e Ouro Verde. Medo, apreensão e angústia cercam também os moradores da aldeia.
As notícias foram chegando aos poucos. Através de ligações telefônicas e idas do acampamento até a aldeia. A distância de aproximadamente 30 quilômetros encurtou depois do desaparecimento de Nísio. A todo momento informações novas chegam para situar quem está na aldeia dos passos à procura do corpo de Nísio.
Da placa que indica a entrada da aldeia, a poucos quilômetros da cidade de Amambai, segue-se reto por um longo caminho. Em meio à mata, casebres vão surgindo e há pouca movimentação. Até que um senhor indígena leva a equipe até a área onde morava Genilto e os demais familiares, filho e parentes de Nísio. Ali estavam reunidos alguns guarani-kaiowa que nos levam ao encontro de dona Eleonora.
Uma das netas, Aparecida Lopes, 44 anos, sorridente e tagarela, é quem fala do sofrimento de saber do ataque contado pelos guarani-kaiowá. E cita o tesouro que a aldeia guarda: uma senhora de 105 anos. Quase quatro décadas a mais que o surgimento de Amambai.
Ao chegar à casa de Eleonora, a inacreditável senhorinha de 105 anos está varrendo o quintal. Firme, sem precisar de nenhum apoio. A neta conversa em guarani, explica que a imprensa está ali e pede que a filha chame as outras netas mais próximas de Eleonora.
"Ela fala que era tudo mato aquela cidade. Nasceu pai, mãe, avô, tudo dela aqui", diz Aparecida mostrando a foto do pai de Eleonora.
Dos 14 filhos que ela teve, a metade já morreu, mas ela continua firme e forte, com uma saúde de ferro.
Eleonora enxerga, ouve e fala muito bem. "Não era assim que acontecia antes, não tinha ameaça, bebida, nunca teve violência. Agora está pior do que antes", observa.
A tradução do guarani para o português fica por conta de Aparecida.
Com mais de um século de vida, foi triste saber da morte do neto nas circunstâncias em que a comunidade relata. Tanto é que a família demorou a contar.
"Antes eu não contei porque ela estava com dor. Quando eu contei ela chorou, disse que queria ver o corpo. Depois achei que tivesse esquecido, mas daí ela comentou que o Nísio tinha ido...", conta a outra neta Regina Lopes, 33 anos.
Por mais que ela não fale o português, entendeu que a equipe ainda falava dos relatos do ataque sofrido. Os olhos da avó de Nísio por um momento viraram tristeza. Quietinha, mexia com as mãos e parecia já não prestar tanta atenção na conversa. O assunto ficou perdido na memória de quem já viveu tanto.
"Em pleno século XXI, índios lutando pelos direitos. Nós que somos nativos lutando pela terra que foi levada pelo europeu", desabafa Crescencia Martins, 25 anos, uma das netas de Eleonora.
Esperado - Mesmo estando na aldeia, a cabeça e o coração estão na área Guaiviry, afirmam. "Não é fácil a demarcação de terra. Quando tem acampamento, sempre há morte. Quando fala que vai entrar na terra, a gente já sabe. Enquanto não tiver outro tipo de organização, mais morte vai ter", descreve Crescencia.
Para eles que ficaram ali cuidando das casas onde Nísio e os filhos moravam, o sentimento em relação ao ataque descrito pelos índios é de surpresa.
"Dessa vez já tinha dado 15 dias. É a terceira vez que entram ali, das outras duas, em dois dias já despejavam. O risco de morte é na primeira semana, passou e a gente pensou agora está firme e não estava", completa.
No final de semana que passou, os filhos, netos, noras e cunhados de Nísio que ainda estavam na aldeia foram todos para Guaiviry. Gente que não deixou de lutar e tomou para si a vontade a batalha de Nísio.
Nas casas o que ficou, ficou. Crescencia e a família sabem que eles não voltam para a aldeia e mesmo assim ficam de olho. "Precisa olhar a casa, ver se não sumiu nada. É tudo deles".
Atentado - Os guarani-kaiowa estão acampados na região desde o dia primeiro deste mês. Nísio Gomes, líder indígena de 59 anos, segundo os índios sofreu ameaças de morte dois dias antes do ataque relatado.
Eles dizem que Nísio foi baleado na cabeça e por todo corpo, após 40 pistoleiros chegaram no lugar procurando por ele. Conforme divulgado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), durante a correria de tiros, três jovens um de 14 anos, outro de 15 e um de 16 anos teriam sido baleados.
De acordo com lideranças indígenas de aldeias vizinhas, o garoto de 14 anos é neto de Nisio. Ele chegou a ser socorrido, medicado e já retornou ao acampamento. Os demais, incluindo o líder, continuam desaparecidos.
O MPF (Ministério Público Federal) abriu investigação e a perícia da Polícia Civil constatou marcas de sangue em meio à folhas, que remontam a cena de um corpo sendo arrastado, possivelmente de Nisio.
Conforme a comunidade, a ação dos pistoleiros foi por volta das 6h30 da manhã de sexta-feira. De acordo com o que os índios informaram, eles ocupavam caminhonetes Hilux e S-10. Na caçamba de uma delas o corpo de Nísio teria sido levado.