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Meio Ambiente

Ver rios secos me faz torcer para que a agonia das águas seja apenas memória

Ano teve fumaça engolindo o horizonte, Pantanal em chamas e fogo criminoso de “alta sociedade”

Por Aline dos Santos | 24/12/2024 07:00
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Em 3 de julho de 2024, era possível caminhar no leito seco do Rio da Prata. (Foto: Paulo Francis)
Em 3 de julho de 2024, era possível caminhar no leito seco do Rio da Prata. (Foto: Paulo Francis)

“Colhe-se da obra do escritor inglês John Donne (1572-1331) que ‘quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade’. Por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti. Assim, quando morre um rio, morremos todos, pois somos parte da humanidade que necessita do ambiente equilibrado. Nesse sentido, todo dano ambiental tem âmbito mundial”. (Trecho de decisão do juiz federal Gilberto Mendes Sobrinho sobre o Rio Taquari)

RESUMO

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O ano de 2024 testemunhou uma crise hídrica severa na Bacia do Rio Paraguai, com os rios Miranda e Prata secando quase completamente. A escassez afetou a economia local, a vida selvagem (com peixes e caranguejos mortos encontrados) e expôs a dependência da região de um ecossistema saudável. A situação foi agravada por incêndios florestais devastadores, intensificados pela seca e ações humanas, resultando em extensa fumaça e poluição do ar. A falta de dados oficiais sobre a presença de agrotóxicos nos rios e a contaminação comprovada em alguns corpos hídricos acentuam a gravidade da situação, destacando a urgência de ações de proteção ambiental e prevenção de incêndios.

Definitivamente, 3 de julho de 2024 foi um dia triste. Em questão de horas, caminhei pelo leito de dois rios secos. Não que não soubesse das águas minguando no Miranda e no Prata, conforme era amplamente divulgado, mas estar ali foi desolador. Pude ver em seca, morte e olhares aflitos o significado da escassez hídrica na Bacia do Rio Paraguai, o Rio do Pantanal.

A 170 km de Campo Grande, em Águas do Miranda, distrito de Bonito, o rio que dá nome à localidade, naquele mês de julho, corria acanhado, escanteado, não ocupando nem metade do seu leito. As águas ali determinam a economia. Se tem rio, tem peixe e tem turistas. Um ciclo que movimenta todas as vertentes de “negócio” do Águas do Miranda, da pesca esportiva à prostituição.

Debaixo da ponte, na régua, o Miranda media 20 centímetros. No topo da estrutura, pichações eram lembranças de quando vinha a cheia e os barcos chegavam bem perto do asfalto. Como em 2018, onde vários casais deixaram os nomes anotados e coração desenhado para a posteridade.

Rio Miranda era lâmina de água de 20 cm em 3 de julho de 2024. (Foto: Paulo Francis)
Rio Miranda era lâmina de água de 20 cm em 3 de julho de 2024. (Foto: Paulo Francis)

Horas depois, no mesmo 3 de julho, já estava debaixo de outra ponte. Dessa vez, assistia à agonia do Rio da Prata, em Jardim, tributário do Miranda. Onde deveria ter quatro metros, não havia uma gota de água. Mas tinham peixes e caranguejos mortos.

No trecho seco de seis quilômetros, pedras, antes cobertas pela água, não formavam mais cachoeira. Também não era mais preciso caiaque para vencer as corredeiras. Bastava caminhar com cuidado para não escorregar no leito liso do rio.

Conforme explicado pelo biólogo Sérgio Barreto, do IHP (Instituto Homem Pantaneiro), a saúde hídrica do Rio da Prata depende da proteção dos banhados, também conhecidos como os brejões. Uma solução é transformá-lo em unidade de conservação. Meses depois, em novembro, com a chegada das chuvas, a água voltou a correr pelo leito do Prata.

Mas 2024 ainda teve tempo de trazer notícias preocupante sobre o Rio Paraguai. O corpo hídrico chegou a marcar “- 68 centímetros”, menor índice em 124 anos de monitoramento. São anos e anos de seca, num ciclo que vem desde 2019.

Corumbaenses andam pelo leito do Rio Paraguai e se aproximam do farol do Porto Geral (Foto: Elanir Miguéis)
Corumbaenses andam pelo leito do Rio Paraguai e se aproximam do farol do Porto Geral (Foto: Elanir Miguéis)

Na fronteira líquida de Mato Grosso do Sul, a brasileira Porto Murtinho é cercada por um dique para se proteger das águas. Mas o rio segue distante da estrutura. Na paraguaia Isla Margarita, que fica de frente para MS, as casas são suspensas mesmo muito distante do rio. A explicação é de que o modelo elevado era uma necessidade arquitetônica para vencer a cheia. As construções parecem sentido com essa “fuga das águas”.

Em Corumbá, o rio ficou tão baixo que foi possível caminhar até as proximidades do farol do Porto Geral. Numa situação classificada como “inacreditável”.

Assoreado e com agrotóxico, o Rio Santo Antônio (à esquerda) é afluente do Miranda (à direita). (Foto: Paulo Francis)
Assoreado e com agrotóxico, o Rio Santo Antônio (à esquerda) é afluente do Miranda (à direita). (Foto: Paulo Francis)

Ponto cego para o veneno - Ao passo que se projeta na produção de grãos, inclusive com aumento de 8% da área tratada com defensivos agrícolas ao longo da safra 2023, Mato Grosso do Sul não tem dados oficiais sobre a presença de agrotóxicos nos rios. Portanto, um ponto cego sobre quais são os pesticidas e se estão dentro do limite aceitável.

Na Bacia Hidrográfica do Rio Formoso, levantamento da Fundação Neotrópica do Brasil apontou que há agrotóxico em três corpos hídricos. No Córrego Anhumas, foram detectados oito tipos de defensivos: simazina, atrazina, carbendazim, fipronil, imidacloprido, propoxur, quincloraque e tiametoxam. Contudo, por ser enquadrado como classe especial, não poderia ter nenhum.

Em 22 de março, no Dia Mundial da Água, estudo divulgado pelo Instituto SOS Pantanal identificou a contaminação por agrotóxicos no Rio Santo Antônio, afluente do Rio Miranda.

Fumaça engoliu o horizonte de Campo Grande em outubro. (Foto: Henrique Kawaminami)
Fumaça engoliu o horizonte de Campo Grande em outubro. (Foto: Henrique Kawaminami)

Dias sem horizonte – A fumaça engoliu o céu de muitas cidades em Mato Grosso do Sul, nos castigando com ar irrespirável nos meses de agosto, setembro e outubro de 2024. No dia 8 de outubro, Campo Grande simplesmente “desapareceu” na densa fumaça. Foram dias de torcida para que caísse a chuva.

“Então, desse período de agosto para cá, a população não só de Campo Grande, como do oeste do Estado, ficou exposta ao nível de poluentes que a gente não está acostumado e realmente isso é uma tendência, ou seja, isso deve se repetir para os próximos anos”, afirmou o professor do Instituto de Física da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e coordenador do projeto QualiAr, que monitora a qualidade do ar na Capital, Widinei Alves Fernandes. A declaração foi em 18 de outubro.

Fogo criminoso e de “alta sociedade” – Em 20 de setembro, empresários e fazendeiros da “alta sociedade” de Corumbá foram alvos da operação Prometeu, deflagrada pela PF (Polícia Federal).

A ação combateu crimes de incêndio, desmatamento e grilagem de terra pública no município, que abriga parte do Pantanal e fica a 428 quilômetros de Campo Grande. O bioma tem sido assolado desde junho por incêndios, numa temporada do fogo ainda mais arrasadora do que em 2020.

Os incêndios se eternizaram em imagem icônica no Arraial São João, tradicional festa junina de Corumbá. Enquanto a festa acontecia, a vegetação às margens do Rio Paraguai ardia em chamas, numa muralha de fogo. O episódio resultou numa segunda ofensiva da PF contra grilagem de área pública e desmatamento.

Pantanal em chamas – A situação dramática do Pantanal trouxe o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a Corumbá em 31 de julho. Sem chuva, a água caiu do céu com a ação de um avião cargueiro. No primeiro dia de operação, em 29 de julho, a aeronave KC-390 Millennium lançou 48 mil litros de água.

A cada voo, o Sistema Modular Aerotransportável de Combate a Incêndios (MAFFS, do inglês Modular Airborne Fire Fighting System) conta com um tubo que projeta água pela porta traseira esquerda do avião, com capacidade de descarregar até 3.000 galões (12 mil litros) de água em áreas de incêndios.

Jacaré carbonizado no Pantanal de Mato Grosso do Sul. (Foto: Gustavo Figueirôa/SOS Pantanal).
Jacaré carbonizado no Pantanal de Mato Grosso do Sul. (Foto: Gustavo Figueirôa/SOS Pantanal).

Para o Instituto SOS Pantanal, o ano de 2024 é o retrato da soma de falta de prevenção, seca muito extrema e o fator homem, que ateia fogo. Seja provocado (queima de área) ou acidental (cigarro e fogueira) perto de rio.

Em Mato Grosso do Sul, 1,6 milhão de hectares foram queimados entre 1º de janeiro e 11 de dezembro, segundo o Lasa-UFRJ (Laboratório de Aplicações Satélites da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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