“Vou me matar”: réu ameaçou suicídio 4 vezes após descoberta de óbito da enteada
Por mensagem, padrasto chamou menina de endemoniada e mandou esposa mentir sobre hematomas como "da outra vez"
Durante exatamente 23 minutos, logo após óbito de criança de 2 anos e 7 meses ser constatado na UPA (Unidade de Pronto Atendimento Comunitário) do Bairro Coronel Antonino e a polícia ser chamada, o padrasto da menina, Christian Campoçano Leitheim, 25 anos, ameaça suicídio quatro vezes em mensagens trocadas com a mulher e mãe da vítima, Stephanie de Jesus da Silva, 24.
A conversa do casal no momento que a morte é descoberta, no dia 26 de janeiro deste ano, faz parte do relatório elaborado pela Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA) para embasar as acusações de assassinato contra Christian e Stephanie. Ainda na fase investigatória, a ré entregou celular e senha para a polícia, enquanto o padrasto se negou a fornecer o acesso ao aparelho dele, apreendido na data do flagrante. Policiais da DEPCA também não encontraram chips no telefone.
A investigação transcreveu diálogo que começou às 16h49, enquanto Stephanie ainda estava a caminho da UPA, supostamente para socorrer a filha, e terminou duas horas depois, às 18h42, quando a mãe diz ao marido que ele não precisa ir até o posto de saúde.
A tensão dos dois, contudo, é evidente durante cerca de 25 minutos, assim que Stephanie fala da constatação do óbito. “Falaram que ela* morreu... faz tempo”, diz a mãe, chorando, conforme descrito no relatório.
“Não... Não... Mentira velho...”, responde Christian e, neste momento, começa a “admitir culpa” pela morte da enteada: “Eu sou um lixo de pai, eu sou um lixo”, “É tudo culpa minha, tudo culpa minha. Eu vou me matar”, são algumas das frases ditas por ele, às 17h02.
Stephanie fica em silêncio, mas às 17h09 ele continua: “É tudo culpa minha, desculpa. Eu vou sair da sua vida”.
Aparentemente pressionada por todo o contexto e pela chegada de policiais ao posto de saúde, parte da mãe a iniciativa de combinar versão sobre o ocorrido com a criança: “Os policiais estão aqui. Que que eu faço?”.
Ele devolve a pergunta: “Do que?”. “Por causa dos hematomas”, afirma a mulher e no minuto seguinte, Christian faz a terceira ameaça de suicídio: “Eu não sei, inventa algo. Ou me manda preso. Fala que se machucou no escorregador do parquinho. Igual da outra vez. Me manda preso. Me responde, cara. Tô indo me matar no pontilhão”, diz, ressaltando que o casal já havia passado por situação semelhante e mentiu.
Às 17h17, Stephanie conta que médicos afirmam que a filha morreu “faz horas”, mas diz não acreditar, porque segundo ela, a menina conversou com o casal antes de ela decidir levá-la para o socorro. O réu responde com mais uma ameaça, às 17h25:
Eu vou me matar. Tô saindo. Não vou levar o celular, nem identidade, pra quando me acharem demorar para reconhecer ainda. Desculpa Stephanie. Vou sair da sua vida”, diz Christian.
Mas logo, no mesmo minuto, ele muda de ideia: “Me manda preso pra eu pelo menos me sentir menos culpado. Se eu tivesse te escutado aquela hora, ela tava bem agora”.
O fim da conversa – Cinco minutos depois desse áudio de Christian, Stephanie dispara a informação de que há suspeita de estupro. “Nunca”, ele nega. A mãe da criança rebate afirmando que o corpo da filha foi analisado por profissionais. O padrasto jura que nunca abusou da enteada e dá mais um ultimato: “Se você achar que é verdade, pode me mandar preso. Pode fazer o que quiser. Já perdi minha filha mesmo”.
Os dois não trocam mais mensagens e, mais de uma hora depois, Stephanie diz para o marido não ir até o posto de saúde. “Só se eles pedirem”, diz, provavelmente se referindo aos policiais. “Tomara que não”, finaliza o então suspeito.
"Não aguento mais!" – Conversa do casal no dia anterior à constatação da morte da garotinha também chamou a atenção dos investigadores da DEPCA. Os dois discutiam sobre o plano de internet contratado para a residência e Stephanie parece estar no trabalho, enquanto Christian cuida das crianças – além da enteada de 2 anos, o filho mais velhos, à época com 4 anos, e a bebê do casal. Ele também fala em “se matar”.
“Eu tô estressado. Deixa, esquece essa merda. Meu computador está travando tudo. A bebê* gritando igual uma retardada. A menina* ‘endemoniada’ aqui. Vontade que eu estou de me matar. Hoje, você chegando, eu estou saindo. Vou dar uma volta. Não aguento mais”.
No áudio seguinte, ele completa: “por mim que a casa caia. Não tenho ânimo para mais nada”. Mais adiante, Stephanie diz que tentará ajudar mais em casa. Ele xinga e continua a desabafar: “Não vem com drama não, seu inferno. Enquanto você está mudando, eu estou morrendo. Quando você terminar todo o seu processo de mudança, eu não vou estar mais aqui. Eu vou acompanhar do inferno”.
O crime – Na tarde daquele 26 de janeiro, uma quinta-feira, a menina deu entrada na UPA do Coronel Antonino, no norte de Campo Grande, já sem vida. Inicialmente, a mãe, que foi até lá sozinha com a garota nos braços, sustentou versão de que ela havia passado mal, mas investigação médica apontou lesões pelo corpo, além de constatar que a morte havia ocorrido cerca de quatro horas antes de chegar ao local.
O atestado de óbito apontou que a menininha morreu por sofrer trauma raquimedular na coluna cervical (nuca) e hemotórax bilateral (hemorragia e acúmulo de sangue entre os pulmões e a parede torácica). Exame necroscópico também mostrou que a criança sofria agressões há algum tempo e tinha ruptura cicatrizada do hímen – sinal de que sofreu violência sexual.
O padrasto responde pelo homicídio com as três qualificadoras e pelo estupro, já a mãe da menina, pelo homicídio, como o Christian, mesmo que não tenha agredido a filha, mas porque, no entendimento do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), ela se omitiu do dever de cuidar.
Na delegacia, Christian optou por exercer o direito ao silêncio. Já Stephanie afirmou que o companheiro batia na filha como forma de correção, mas negou que ele tivesse espancado a enteada naquele dia. Ela alega que nunca denunciou por medo do marido, já que também era vítima de violência doméstica. Os dois ainda não foram interrogados em juízo.
A morte jogou luz sob processo lento e longo que a menina protagonizou com idas frequentes à unidade de saúde, tentativa do pai em obter a guarda após suspeita de que a criança era vítima de agressão e provocou série de audiências públicas, protestos e mobilização para criação da Casa da Criança, bem como soluções ao falho sistema de proteção à criança e ao adolescente em todo o Brasil.
Ajuda - O Campo Grande News aproveita para informar que, na Capital, o Grupo Amor Vida (GAV) presta um serviço gratuito de apoio emocional a pessoas em crise através do telefone 0800 750 5554. Ligue sempre que precisar! O horário de funcionamento é das 7h às 23h, inclusive, sábados, domingos e feriados.
*Os nomes são ditos pelos acusados, mas foram omitidos ou trocados por outras palavras para preservar a identidade das crianças, como prevê o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).