Abraço entre pai e mãe foi o ponto final em julgamento jamais imaginado
Paulo Xavier e Cristiane Coutinho perderam o filho em 2019; os Name foram acusados e condenados 4 anos depois
“A contravenção tem um princípio, ela é governo, e não tem culpa que o governo mude toda hora”. A frase é do bicheiro Castor Andrade, em 1983, um dos maiores banqueiros do jogo do bicho que o Brasil já teve.
Sabe aqueles desfechos que por anos ficam só no imaginário? Pois por muito tempo a imprensa ouviu nos bastidores conversas sobre grupo "intocável" que explorava jogos ilegais e mantinha o poder sobre o crime organizado. Até que um dia alguém inocente morreu e a "casa caiu". Foi assim com uma das famílias mais tradicionais da Capital, que em 2023 teve a história condenada no banco dos réus.
O que ninguém pensou um dia ser julgado, este ano rendeu o júri popular do século, com condenação dos acusados de tramarem o assassinado do pai e executarem o filho por engano. O escândalo de 2019 teve um fim quatro anos depois, selado com abraço entre pai e mãe que ficaram "órfãos". Ambos foram intensos em buscar justiça e a mãe, a advogada Cristiane Coutinho, fez parte da acusação.
Em Campo Grande, a família Name, representada por Jamil Name, o “Velho”, e seu filho, o Jamilzinho ou “menino”, comandou por vários anos as apostas de jogo do bicho e faturava, de longe, não menos que R$ 50 mil por dia, conforme relatório do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) relacionado a uma das fases da Operação Omertà, que denunciou o esquema do jogo de azar e outros crimes decorrentes com o lucro com a contravenção.
“Ao final da extensa lista de um dia de apostas realizada em apenas 09 municípios, (...), sugere que essas apostas ocorrem em outros municípios do Estado de MS, portanto, fica demonstrado que foram realizadas 33.414 apostas, cujo valor arrecadado foi de R$ 81.997,20”, cita relatório do Gaeco na Operação Black Cat, quarta fase da Omertà no Estado, em 24 de setembro de 2020.
Dados coletados pelo Garras (Delegacia Especializada Repressão a Roubos a Banco, Assaltos e Sequestros) e usados pelo Gaeco dão conta que era justamente o jogo ilegal que mantinha outras atividades ilícitas, como “execução de homicídios, verdadeira milícia armada, pelas mais variadas motivações, desde desacordos comerciais até inimizades e vinganças”.
Ou seja, o poder monetário proporcionado pelo jogo do bicho dava outros poderes à organização criminosa, corrompendo agentes públicos dos mais variados níveis e poderes, o que garantiu por anos que a tradicional família conseguisse “exercer impunemente a rentável exploração ilegal do jogo do bicho, que juntamente com a agiotagem, é umas das principais fontes de renda para o grupo”.
Ainda no relatório, o Gaeco sustenta que “neste particular, impende registrar que, embora se trate de contravenção penal, a exploração ilegal do jogo do bicho fomenta à prática de outros crimes graves como corrupção, extorsão, lavagem de dinheiro, homicídios, até mesmo para garantir o próprio funcionamento do ilícito, tratando-se de atividade extremamente maléfica à sociedade”.
Não é exagero afirmar que o desenvolvimento do jogo ilegal vem sempre acompanhando de um espesso rastro de sangue”, afirma o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado.
E realmente não é exagero, já que em julho deste ano, Name Filho, o ex-guarda municipal Marcelo Rios e o ex-policial civil Vladenilson Daniel Olmedo sentaram no banco do Tribunal do Júri para responder pelo assassinato de Matheus Coutinho Xavier em abril de 2019, quando ele tinha 19 anos. Em júri histórico, eles foram condenados. Jamilzinho, que tem 46 anos de idade, teve condenação de 23 anos e 6 meses de reclusão.
A morte de Matheus tem a ver com o jogo do bicho? Não diretamente. Mas indiretamente, a contravenção permite que a organização obtenha recursos para comprar agentes públicos que fazem vistas grossas aos atos ilegais e se sinta livre para cometer outros crimes, como o próprio Gaeco citou. Ainda que esses crimes tenham motivação torpe, como foi o caso de Matheus.
O pai dele, ex-policial Paulo Roberto Teixeira Xavier, trabalhou para os Name, mas acabou saindo do grupo e indo atuar junto com desafeto da família. Bastou para que Xavier virasse alvo. Ou o caso do "playboy da mansão", Marcel Costa Hernandes Colombo, também assassinado, aparentemente anos depois de ter se desentendido com Jamilzinho em uma casa noturna de Campo Grande.
Sobre ter "costas quentes", não à toa, Name Filho falou durante o júri, que tinha acesso fácil a figuras do alto escalão das polícias do Estado, e que o trânsito de autoridades em sua casa era comum. Ele não citou nomes.
Acompanhamos cada hora do julgamento, que contou com aparato de segurança inédito no Estado, tamanho poderio financeiro de quem estava sendo julgado. Foram três dias de audiência que pararam a cidade e manteve a redação ativa por praticamente 24 horas.
Inclusive esta repórter que escreve fez parte da força-tarefa do Campo Grande News que contou com todo um time de jornalistas para reportar o julgamento em cada detalhe. Para mim, enquanto profissional, o momento histórico da Justiça de MS foi também histórico para a imprensa, principalmente pela responsabilidade social em entregar as informações da forma mais fiel possível ao leitor diante de um caso tão emblemático.
Quem pensaria que uma família tradicional e financeiramente poderosa em Mato Grosso do Sul sentaria no banco dos réus? Isso é tão verdade, que o próprio Gaeco sustentou que “é fato público e notório a ligação da família Name com a exploração de jogos de azar, em especial com o jogo do bicho, mercado ilegal no qual atua há anos”, até com ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcelo Barbosa Martins, “em pronunciamento polêmico no ano de 2010, referiu-se a Jamil Name como "o banqueiro do jogo do bicho nesta capital”, conforme relatório do grupo.
Posso enfatizar que participar, ainda que indiretamente de um júri desse gabarito como jornalista, é poder acompanhar a história enquanto ela é experimentada. Como cidadã, desenvolve o senso de Justiça e a capacidade de acreditar que ela ainda pode ser feita.
Dentro do tribunal, a repórter Bruna Marques viu de perto o júri e a dinâmica entre réus, defesa, acusação e juiz. "Durante quase quatro anos assistindo júris como repórter de polícia, sem dúvida esse foi o mais marcante. Para quem só ouvia falar da família Name, poder ver um deles de perto e entender tudo que eles representaram para a história do nosso Estado, com certeza foi um dos maiores aprendizados ao longo da minha vida profissional", relata.
Além disso, a jornalista avalia que ver o julgamento de Jamilzinho e seus comparsas "é saber e sentir que a Justiça do nosso Estado não é tão cega e está aí para punir devidamente quem precisa", afirmou, enfatizando estar ansiosa para o júri já marcado em relação ao caso do "playboy da mansão".
E agora? - Jamil Name Filho está preso no Presídio Federal de Mossoró e conforme novos detalhamentos de investigações, a família já não domina o cenário do jogo do bicho em Campo Grande e em outras cidades do interior. Grupo carioca, o MTS, entrou no lugar e divide espaço com outro de São Paulo.
Entretanto, organização atuante em duas grandes cidades de Mato Grosso do Sul - Dourados e Ponta Porã - quer assumir o negócio e trava verdadeira guerra por ele, escancarada na Operação Successione, também do Gaeco, no começo deste mês. Com duas ações consecutivas - em 5 e 20 de dezembro - pelo menos 12 pessoas foram presas.
O Campo Grande News teve acesso a relatório que desencadeou parte dessas ações e descobriu que roubos de malotes do dinheiro do jogo do bicho foram forjados para tentar forçar que coletores que atuavam para o MTS passassem a trabalhar para o grupo de MS, o BET. Reportagem acompanhou também a suspeita sobre assessores do deputado Roberto Razuk Filho (PL), mais conhecido por Neno Razuk, que foram presos na operação e exonerados de seus cargos no dia seguinte.
O próprio deputado foi citado na investigação, já que um dos carros usados no falso assalto estava alugado em nome do parlamentar.
A ideia do grupo era forjar os roubos para que os motociclistas responsáveis pela coleta das apostas tivessem justificativa para saírem do MTS, alegando risco e medo. Entretanto, ao que parece, a estratégia foi um “tiro no pé”, uma vez que foi justamente o roubo dos malotes que alertou e iniciou investigação sobre a disputa pelo jogo do bicho na cidade.
O Campo Grande News vai continuar a postos para reportar o que acontece na Capital, fazer denúncias e ver a Justiça ser feita - ainda que de forma muitas vezes precária - diante de tantos crimes.
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